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Publicado: Segunda-feira, 10 de maio de 2010

A sapatomaníaca

Natália desembrulhou o pacote que trazia, diante do armário abarrotado procurando um lugarzinho para acomodar mais um par de sapatos que acabara de comprar.

Tinha dezenas de pares. Nunca conseguiria usar nem a metade deles, mas por um impulso inexplicável estava sempre comprando mais um.

Não que Natalia fosse extravagante. Pelo contrário, vestia-se bem, sem exageros, era até bem econômica, mas em se tratando de sapatos, ela perdia todo o senso de economia ou praticidade.

Olhou com tristeza a seu acervo. Cada sapato tinha a sua história, triste, dramática, trágica ou desconfortável. Cada vez que algo a aborrecia, ela ia pra rua e voltava com mais um par de sapatos para a sua coleção.

Tudo começou quando ela tinha quinze anos e foi participar de uma festa de debutantes.

A mãe comprou-lhe um bonito vestido e ia comprar os sapatos também, mas a tia Henriqueta disse:

Não precisa comprar. Ela pode usar um dos da Flora.

Natália estava acostumada a emprestar coisas da Flora. Flora era um pouco mais velha, já freqüentava a sociedade e os pais lhe davam tudo que ela queria. Tinha muita coisa bonita que sempre emprestava para a prima mais pobre.

Natália nunca usara salto alto, mas não hesitou em escolher uma sandália bem alta.

No dia da festa estava terrivelmente desconfortável. Os pés doíam e ela mancava, mal podendo equilibrar-se sobre os saltos.

A certa altura, numa roda de amigos, Flora destilou seu veneno sobre a prima:
- Como você está mancando! Acho que esses sapatos estão pequenos para você. Meu pé é menor do que o seu.

- Não está apertado. Está muito bom.

- Você devia ter escolhido um mais baixo.

Natália sentiu que enrubescia. Estava tremendamente desconcertada. Dor nos pés, vergonha e mais do que tudo um ódio surdo da prima insolente.

Todos sentiram-se mal sem saber o que dizer e Sérgio resolveu o impasse convidando a Natália para dançar.

No dia seguinte ela contou o incidente para a mãe pensando que esta a compreenderia, mas ela não deu muita importância ao fato:

- Quando é que vocês vão parar de brigar? Desde crianças que vocês se adoram, mas vivem se desentendendo.

A atitude da mãe só fez aumentar a raiva de Natália e quando foi com ela a casa da tia para devolver os sapatos ela não se agüentou mais. Pegou um dos sapatos e jogou na cara da Flora dizendo:

- Pode ficar com esses horrorosos sapatos velhos que eu nunca mais vou precisar de você nem de suas coisas!

O sapato acertou o nariz de Flora que começou a sangrar. Tia Henriqueta correu para acudir enquanto a mãe de Natália lhe dava umas palmadas.

Natália ficou dias remoendo o incidente e alimentando sua raiva.

Quando recebeu sua mesada, correu a uma sapataria e comprou os sapatos mais caros que havia. Gastou todo seu dinheiro. Ficaria o resto de mês sem um vintém, mas estava, de certa forma, satisfeita.

A mãe achou um absurdo, mas não disse nada. A essas alturas ela já estava morrendo de pena da sua filhinha. Os sapatos foram guardados e o incidente esquecido.

Algum tempo depois, Natália sofreu outro golpe, desta vez, bem pior. Os pais a chamaram para aquela difícil revelação. Estavam separando e contavam isso para a filha com cuidado, escolhendo as palavras, tentando caramelar a amarga realidade.
Natália não disse nada. Dizer o que? Só chorou e depois num impulso incompreensível saiu à rua e voltou com um extravagante par de sapatos prateados que nunca usaria.

A partir de então, cada frustração, cada mágoa era documentada com um par de sapatos que ela foi acumulando no armário.

Como a maioria das moças, Natália queria casar-se e sonhava com um romance maravilhoso com um príncipe encantado, apaixonadíssimo por ela, rico, bonito, etc.etc.

Teve vários namorados, mas nenhum que se assemelhasse a isso e, de decepção em decepção (cada decepção um par de sapatos) acabou envelhecendo sozinha.
Agora tinha uma implicância solene por casamentos. Estava sempre procurando a sua volta, na sua roda de amigos casados, alguma falha para justificar-se:

"Casamento é mesmo uma droga! Ainda bem que não casei!"

Cada vez que recebia um convite para um casório, irritava-se:

- Casar pra que? Daqui a pouco já se enjoaram um do outro e estão divorciando. Não sei por que tanta festa por uma coisa tão à toa. Que interessa para os amigos a besteira que estão fazendo?

E comprava mais um par de sapatos...

Este último, comprou-o depois de um desentendimento que tivera com a Joana, sua empregada há mais de vinte anos.

Joana trabalhava em sua casa uma vez por semana e ela esperava o Dia da Joana para experimentar receitas culinárias que depois as duas comiam juntas comentando o resultado e ela levava o que sobrava para sua casa.

Davam-se muito bem, mas, ultimamente a Joana andava insuportável. A filha muito nova resolveu casar-se de repente e a Joana não falava de outra coisa, preocupada com o futuro genro desempregado, com a filha sem juízo e, como se isso não bastasse, com a cerimônia, a festa, os convites, a roupa, etc.

Agora estava preocupada com os sapatos que usaria na cerimônia. O vestido, ela alugou, mas os sapatos tinha que comprar.

- O que você acha?

- Eu acho tudo isso uma grande bobagem. Esse casamento não vai dar certo mesmo, pra que tanta preocupação com ele. Deixe os dois que se arrumem, já que inventaram de casar-se antes da hora.

Joana ficou ofendida. Nunca Natália a tratara assim. Discutiram, acabaram falando coisas que não deviam e Joana dispensou-se do trabalho na casa de Natália.
Como sempre que se aborrecia, Natália saiu à rua e voltou com mais um par de sapatos que agora ia guardar para nunca usar.

De repente, tomou consciência da estupidez do que estava fazendo.

Quanto dinheiro tinha ali, empatado naqueles inúteis sapatos enquanto a coitada da Joana não podia comprar um só par para ir ao casamento da filha.

Não! Ela ia mudar aquilo. Ia mandar chamar a Joana, pedir desculpas e mandar que ela escolhesse o sapato que quisesse para a sua festa.

Nunca mais tentaria compensar aborrecimentos com sapatos. Ia doar tudo aquilo para um bazar beneficente e mais, ia arranjar um trabalho voluntário, fazer alguma coisa útil. Mudar de vida!

Joana aceitou as desculpas de Natália. Era uma pessoa de boa índole, incapaz de guardar ressentimentos e, além disso, não podia perder o seu emprego, justo agora que estava precisando tanto.

Os olhos de Joana arregalaram-se diante da quantidade de sapatos a sua frente e a Natália dizendo:

- Pode escolher o que quiser.

Mas, nem bem havia pronunciado essas palavras, Natália arrependeu-se:
- Melhor, não! Eu dou o dinheiro e você compra do seu go

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