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Publicado: Sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A liquidação do Natal

A liquidação do Natal
O sentido do Natal é enaltecer o ser e não o ter

“Bom, pelo menos encontrei o celular que minha filha quer. Agora é correr atrás dos pedidos dos outros dois” desabafou a mãe à minha frente na longa fila do caixa de uma megalivraria. Apesar do semblante cansado, tinha um ar de vitoriosa. Ela estava em busca de um determinado celular rosa que sua filha de 9 anos havia pedido ao “Papai Noel” e que, segundo ela, ali naquela loja estava custando “só 349 reais”. Imaginei que o “só” significasse que, para aquela mãe, dinheiro não fosse algo com que se preocupar, mas reconsiderei quando ela completou, num suspiro meio conformado: “Mesmo assim, tá mais caro que a mensalidade da escola...). Ela estava, há mais de uma semana, pesquisando e procurando o celular para a filha que, embora já tivesse um, havia pedido outro. Quando sua vez no caixa chegou, estávamos falando justamente sobre quanto tempo, muitas vezes, perdemos em busca de algum objeto e de dinheiro para comprá-lo na ânsia de agradar a quem amamos, privando-nos justamente do tempo tão precioso de estar ao lado daquela pessoa.

Neste corre-corre das compras para o Natal, é como se pudéssemos ver, em close, este círculo vicioso: as crianças são bombardeadas, minuto a minuto, por mensagens que buscam convencê-las de que precisam muito de determinados objetos para serem felizes e aceitas em seus grupos. Os pais, cujo desejo maior é ver os filhos felizes, não veem porque dar a eles outra coisa que não o que tanto pedem. E como os objetos não podem proporcionar a felicidade prometida por não terem vida, logo são descartados, dando lugar a novos pedidos. Assim, enquanto os pais se ausentam na tentativa de suprir tantos  pedidos, a publicidade dirigida às crianças fecha ainda mais o círculo, intensificando os apelos.

8.900 é o número aproximado de anúncios veiculados pela empresa de brinquedos Mattel nos 15 dias que antecederam o último dia das crianças, apurado pelo Observatório de Mídia Regional da Universidade Federal do Espírito Santo numa pesquisa sobre monitoramento de publicidade infantil em parceria com o Instituto Alana. E, infelizmente, esta empresa campeã é apenas a primeira colocada da lista, seguida de outras que também anunciaram maciçamente para crianças no mesmo período. Se, por um lado, este número é assustador, por outro, torna mais visível o abuso do mercado sobre a vulnerabilidade infantil e sobre este jogo desigual no qual quem anuncia sabe o que pretende e como consegui-lo enquanto as crianças não conseguem entender o tipo de manobra a que estão expostas.

Proteger as crianças de todo esse assédio comercial não é realmente fácil, porém, temos saídas. É no contato cotidiano com os filhos que podemos transmitir-lhes valores e informações que os ajudarão a fazer escolhas saudáveis. Pouco a pouco, vamos ajudando-os a reconhecer em si qualidades, características e talentos inatos que contribuem para a construção de sua identidade e desenvolvimento de sua autoestima. É brincando, lendo e dialogando com eles que os ajudamos a perceber a infinidade de recursos que eles têm de inventar a própria diversão e de serem felizes independentemente do que possuem. É preenchendo-os com nosso olhar devotado, nosso “não” no momento certo, nossas orientações firmes e com o calor do nosso abraço que os protegemos da insatisfação “inexplicada” que conduz a tantas desordens emocionais. Para isso, temos que resistir à sedução comercial cujo objetivo é nos afastar desse contato para preencher depois o vazio decorrente dele com toda sorte de produtos.

Expressar o afeto por meio de presentes nada teria de preocupante não fosse esta espécie de liquidação dos valores mais humanos e a tentativa de convencer, principalmente as crianças, que tanto o sentido de felicidade como o de pertencimento estão no consumo. Muito diferente disso, as crianças têm uma capacidade incrível de produzir, com genuinidade, a própria diversão e de bancar o próprio pertencimento pela crença espontânea na importância do outro para dar vida às brincadeiras. Por estarem em desenvolvimento e ainda sem a capacidade crítica formada, elas ainda acreditam, muitas vezes, nos discursos persuasivos e, por isso, é muito importante contarem com bons exemplos nos quais se espelhar.

Dentro de casa, o exemplo começa por refletirmos se compramos por necessidades reais ou por impulso, se presenteamos como forma de materializar a lembrança do nosso afeto ou em substituição a ele. Se armamos uma árvore de Natal para colocar presentes embaixo ou para celebrar ao redor dela a alegria de estarmos juntos e podermos contar uns com os outros. E fora de casa, devemos discutir a questão do consumismo na infância onde e sempre que for possível, pressionar as autoridades pela aprovação de leis que regulamentem a publicidade para crianças e denunciar as mensagens que considerarmos abusivas para elas.

“Paz na terra aos homens de boa vontade” diz a máxima do Natal e, realmente, é essa boa vontade que precisa triunfar para que as crianças possam brincar em paz no mundo maravilhoso de sua imaginação e inventividade. Com relação aos que anunciam para crianças, este momento é também uma ocasião propícia de apelarmos à cada um deles para que reflitam sobre as consequências de sua atuação em relação à formação das crianças e adolescentes. Façamos votos para que eles possam substituir a sede de lucrar pela sede de justiça, a crença no ter pela crença no ser e que, quando disserem Feliz Natal em suas mensagens, possam dizer isso com pertinência e a sinceridade de uma criança.

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