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Publicado: Quarta-feira, 12 de janeiro de 2005

A cozinha da minha casa

Dia desses, véspera de natal, lidando na cozinha, mexendo panelas, antigas memórias foram surgindo. A cozinha da minha casa, a mesma que já foi domínio da mãe, da avó, da bisavó e da tataravô, agora é meu reino, quase um laboratório de alquimia, com invenções que dão certo e outras absolutamente desastrosas.

O antigo caderno de receitas legado pela Vó Nenê, escrito com caneta tinteiro e letras primorosas, tem algumas partes manchadas e difíceis de ler, mas mesmo precisando de lupa para decifrar certos ingredientes, tornou-se meu desafio culinário.

Transformar os quilos de açúcar e as dúzias de ovos (quase todos os doces tinham coco, açúcar aos montes e muitos ovos) produzidos no fogão a lenha para o qual as receitas foram criadas, exige adaptações e reformulações que são complicadas de equilibrar... às vezes vai tudo para o lixo e começo de novo...

À medida que fui descobrindo as receitas, fui percebendo que os hábitos alimentares de cem anos atrás eram muito sofisticados e ao mesmo tempo bem simples. Os mesmos ingredientes que preparavam a comida do cotidiano transformavam-se em pratos elaborados nos dias de festa. O coco, o açúcar e os ovos da cocada de todo dia de repente se transmutavam numa Coroa de Noiva, sobremesa reservada para as festas mais engalanadas, dada a dificuldade e o tempo para prepará-la (é sem dúvida, o doce que faz todos em casa lamberem os beiços, só de lembrar...).

O mesmo franguinho de todo dia, a carne de porco rotineira, a farinha de milho, o toucinho, ganhavam sabor refinado em travessas de louça inglesa, que só eram usadas nos almoços de Páscoa e Natal. Talvez um ou outro ingrediente mais difícil de encontrar (e por isso, mais caro) marcava a solenidade do prato. A escassez de novidades criava a necessidade dessas transformações ...

Certamente essas mulheres eram verdadeiras heroínas, pois eu, com todos os recursos da tecnologia ao meu dispor, passei nove horas na beira do fogão... fico imaginando se fosse preciso colocar a lenha, assoprar com casca de laranja seca...

Mas, o que eu queria dizer é que, assim, mexendo panelas, me dei conta que sou a quinta geração de mulheres a habitar esta casa.Por mais de cem anos, as mulheres da família tem repetido os mesmos gestos, executado essas mesmas receitas que hoje me desafiam.

Repetir esse ritual é mágico no que ele tem de mais simbólico, o dar de comer, alimentar a gente da casa, dar tempero à vida. Sentir na palma da mão os sabores centenários é uma reverência a todas que me precederam nessa cozinha — Leonor, Marie Louise, Syla, Sylmara - e que cumpriram o seu destino de matriarcas, perpetuaram suas verdades, e acima de tudo, suas receitas de viver.

O fogão a lenha já não existe, dele sobrou só a marca no piso de ladrilhos, os ovos não são mais apanhados no galinheiro do quintal, nem o açúcar tem a mesma química de outrora, mas o gesto ancestral permanece, e isso é o essencial, passar para a nova safra da família o caderno de receitas, que para elas será da tataravó ... Chegará até elas carregado de experiências insólitas, como a fórmula para fazer fermento em pó ou leite condensado, mas levará também o ingrediente perene de nossa história, o elo que nos faz diferentes e tão parecidas.

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