O SUMIÇO DO MUNDO - Capítulo 4
Jéssica Ferrari
No “outro mundo” e sem dinheiro
Nem todos os sumidos sabiam que tinham sumido
Um restinho de humanidade
ACONTECEU NO CAPÍTULO 3: Um pouco antes das onze e meia daquela mesma noite de 9 de agosto de 2007, os moradores de Ilhabela ouviram um forte estalo, todas as luzes se apagaram e os telefones emudeceram. Na manhã seguinte, aqueles que olharam para os lados do mar espantaram-se ao ver que o continente tinha desaparecido. Em lugar do cenário familiar – a costa de São Sebastião com a Serra do Mar ao fundo – não se avistava nada, apenas um oceano agitado. A população atônita se postou ao longo das praias contemplando o vazio, sem nada entender. No pontão das balsas uma multidão desesperada queria embarcar a qualquer custo na única balsa atracada, mas esta não tinha para onde navegar. Dois helicópteros estacionados na ilha decolam, mas regressam sem ter avistado terra, assim como acabam voltando todos os barcos que haviam partido esperançosos. O comandante de um transatlântico da Línea C, ancorado junto à Ilhabela, toma a temerária decisão de zarpar à procura do seu porto, Gênova. O namoro de Selene com Gesualdo é recente mas, dadas as circunstâncias, ela o apresenta à família, em casa. Seu pai, Pedro Iroquês, marinheiro aposentado, simpatiza com o rapaz e o convida a participar de uma reunião de vizinhos, Alarmados, todos querem entender a situação e se preocupam com o que lhes possa acontecer. PARA LER A ÍNTEGRA DO CAPÍTULO 3, CLIQUE AQUI. |
No “outro mundo” e sem dinheiro
Quarenta e oito horas depois do dia fatídico, que logo ficou sendo conhecido na ilha como o Dia do Fim do Mundo, só os crentes e forasteiros ainda alimentavam a ilusão de que aquela espécie de mistério iria se desfazer, de um momento ao outro, por outra mágica ou milagre. Além de Iroquês e seus amigos, muitas outras pessoas já tinham chegado à conclusão de que o mundo sumira e só sobrara a ilha. Os sinais eram claríssimos: não havia mais qualquer comunicação eletrônica e os barcos que saíram à procura do continente nada acharam, sendo que os poucos que não regressaram só podiam ter perdido o caminho de volta.
Metade das autoridades municipais – o prefeito Joano Strauss Neto, o comandante da PM e quatro dos oito vereadores – achavam-se ausentes naquele dia 9 de agosto, e ausentes ficariam. Por um edital manuscrito colado à porta da prefeitura, os secretários e os vereadores remanescentes convocaram todos os ilhabelenses válidos para formar uma comissão de salvação municipal, sendo que a expressão “municipal” se apresentava riscada, talvez porque, no estado em que estavam as coisas, não era possível precisar o marco legal da Ilha de São Sebastião... A comoção era geral e certamente por isso a convocação não teve o menor efeito. Nem os próprios secretários e vereadores se apresentaram. Contudo, eram inadiáveis as medidas de emergência para assegurar a ordem pública, o abastecimento, as comunicações, o recolhimento dos impostos, o direito à propriedade. Sem um poder público presente e atuante, a comunidade podia facilmente descambar para a convulsão social, quiçá a anarquia.
Alguém já deve ter afirmado que não há nada mais poderoso do que o dinheiro para impor a noção exata de realidade. Mais do que a visão do espaço vazio onde até a véspera estava o continente, foi nas relações de compra ou venda que as pessoas tomaram consciência de que ocorrera uma mudança radical. Já a partir daquele primeiro dia, os supermercados, farmácias, padarias, lanchonetes, lojas, restaurantes e bares deixaram de aceitar cheques ou cartões de crédito. No segundo dia, a maior parte dos estabelecimentos ficou fechada. Nem as agências bancárias abriram. Como não existia comunicação com o continente, não havia como cobrar, conferir ou compensar valores. Nem como receber remessas de papel moeda. Os empregados de empresas “de fora”, que eram a maioria, ficaram apreensivos por que, de repente, o pagamento de seus salários se tornara improvável.
O desespero tomou conta de todos aqueles que se encontravam na ilha desfrutando do bem-estar proporcionado por suas casas secundárias. Sem acesso a suas contas-correntes ou ativos e sem nenhuma perspectiva de que esse acesso pudesse se restabelecer; sem possibilidade de fazer valer seus cheques e cartões de crédito, essa gente se deu subitamente conta de que sua alimentação dependia do pouco dinheiro que tinha nos bolsos e do que sobrava nas suas despensas, já desfalcadas pela falta de refrigeração. Com o passar dos dias, essas pessoas, que se consideravam “remediadas” ou ricas, se converteram no grande contingente dos sem-comida. Possuíam valiosos imóveis e móveis, aparelhos e equipamentos, roupas finas, joias e objetos de arte, barcos e carros, porém o valor desses bens dependia de um mercado que subitamente minguara e desaparecera.
Rodrigo Fragoso Telles (46) carregou o seu picape Ranger com quatro tapetes persas, vários estojos de DVD, um home-theater com TV de 34 polegadas e um computador iMac com impressora a laser; um jogo completo de caçarolas Le Creuzet, um bar portátil com cinco garrafas de Johnny Walker 12 anos e seis garrafas de champagne Taittinger; um faqueiro Christofle, duas caixas de prata lavrada contendo braceletes, anéis de brilhantes, gargantilhas, colares e outras joias, todas de ouro; uma batedeira e um liquidificador, diversos frascos de perfumes franceses ainda sem abrir, lingerie e vestidos com etiquetas da Daslu, camisetas Armani autênticas, um par de raquetes de tenis Wilson Pro com um tubo de bolas novas, um traje de neoprene para mergulho, duas pranchas de surf e uma grande caixa de brinquedos quase novos. Rumou para o Perequê, onde estacionou na frente do Supermercado do Frade. Estendeu os tapetes na calçada, colocou sobre eles as suas mercadorias e se postou ao lado, à maneira dos vendedores ambulantes, procurando atrair a atenção dos passantes. Muita gente parou, por curiosidade, mas pouca gente comprou. Quando escureceu, ele só tinha vendido algumas das joias por preço de bijuteria barata, além de uns poucos brinquedos. Com o dinheiro foi à peixaria e comprou uma tainha fresca para o jantar. No dia seguinte, ele recebeu na calçada a companhia de três vizinhos que também vieram oferecer suas preciosidades. Em mais um dia, o ponto estava criado e virara feirinha.
Outros sem-comida, mais ousados, iam até os bairros populares, como Itaquanduba, Gleba, Taubaté, São Pedro e as aglomerações das praias do Pinto, Armação e Ponta Azeda. Lá batiam de porta em porta seduzindo as famílias de pescadores e outros moradores humildes para comprar por uma pechincha, ou trocar por comida, toda sorte de objetos supérfluos, especialmente telefones celulares, tocadores de CD, televisores, laptops, micro-ondas e outros aparelhos que só funcionariam quando voltasse a haver energia elétrica.
No comércio de atacado e varejo, os estoques de artigos não perecíveis se esgotavam velozmente; estavam sendo entesourados pelos principiantes da especulação. Com medo de que viessem a faltar, os consumidores invadiram os supermercados e mercadinhos e compraram tudo o que restava. Os primeiros artigos a sumir das prateleiras foram pilhas, velas, espiriteiras, lampiões, fósforos, legumes, lâminas de barbear, sabões e produtos de beleza. E, claro, sobraram lâmpadas, congelados, sorvetes e refrigerantes. Os cinco postos de serviço passaram a racionar o fornecimento de álcool, diesel e gasolina e o preço do litro subia de hora em hora. Todos os preços dispararam e a inflação chegou galopando. Nas farmácias, além dos calmantes, já faltavam pílulas e camisinhas no segundo dia. E no dia seguinte, insulina, antibióticos, anti-inflamatórios e anti-hipertensivos. Também já não havia pão nas padarias por causa da falta de farinha. E a cocaína desapareceu das “bocas”.
Os supermercados acabaram sendo saqueados diante da impotência dos empregados e da ausência de repressão policial. E apareceu um bando fazendo arrastão no comércio do bairro do Perequê e na Vila. Possivelmente foi o mesmo bando que inaugurou a temporada de roubo do combustível dos carros. Eram rapazes que agiam em grupo, à vista de todos, arrombando as tampas para sugar todo o álcool ou gasolina que encontravam nos tanques. A temporada foi curta porque ao cabo de poucos dias os tanques de quase todos os veículos estavam secos e não havia como reabastecê-los.
Outras formas de violência foram causadas por puro desespero. Bento Swinehound (57), mal afamado agente financeiro (ou doleiro esperto, como os informados esclareciam), apresentou-se ao Yacht Club Ilhabela querendo fretar um barco oceânico. Pagaria adiantado em dólares ou euros ou libras, como quisessem – disse, brandindo um maço de dinheiro no ar. Ninguém se manifestou (e como poderiam, naquele auge de incerteza?). Dispôs-se então a comprar qualquer iate equipado, abastecido e tripulado – uma boa chance para marinheiros que quisessem ganhar em dólares e escapar dali. Ninguém quis vender. Passou então a assediar Décio Burdeos (42), proprietário da La Navevá, uma potente lancha de 12 metros que estava amarrada no cais. Diante da irritada negativa, sacou um revólver e o encostou na barriga do iatista. Assim ambos subiram a bordo. No instante seguinte, sem que ninguém ousasse intervir, o barco desatracou e rumou para oeste. Bento e Décio nunca mais foram vistos.
Nem todos os sumidos sabiam que tinham sumido
Teve gente que demorou dias para tomar conhecimento da novidade, isto é, do Fim do Mundo. Por exemplo, os moradores do Bonete, praia na costa sul da ilha, de onde não era possível avistar o continente. A aldeia de caiçaras e a pousada que lá existiam só podiam ser alcançadas pelo mar ou por uma trilha de sete km que, por ser bem acidentada, só podia ser percorrida por bons andarilhos. Podia ocorrer, como ocorreu naqueles dias, que ninguém fosse ou saísse do Bonete.
O principal grupo de criação da agência de propaganda W/Überfluss reservara aquele fim de semana prolongado para realizar um non-stop brainstorming na praia da Baía dos Castelhanos. Imersos num relacionamento visceral com a natureza virgem, suas epidermes expostas às lufadas do vento alísio que, ao soprar na praia, levantava partículas de areia dourada, lá estavam, concebendo uma campanha, o vice-presidente de criação, dois redatores, dois designers e seus respectivos assistentes.
Tratava-se de anunciar um condomínio a incorporar e construir na antiga Cracolândia de São Paulo, então em processo de revitalização. No espaço de uma quadra inteira se ergueria um esplêndido Business Center. A característica mais marcante do projeto eram os fantásticos jardins suspensos. Nos terraços dos cinco blocos previstos seriam plantadas autênticas matas atlânticas a partir de mudas que já estavam sendo cultivadas, ou melhor, educadas para o seu novo habitat. Pendentes de licenciamento pelo IBAMA, estavam previstos também casais de bichos-preguiça, esquilos e outros animais menores (araras não, devido a seu grasnar irritante). Era uma forma de São Paulo resgatar, dentro do que permitiam as circunstâncias, uma amostra pequena, porém eloquente, de sua natureza primeva. A inteligência do projeto residia no aproveitamento racional desses bosques suspensos. Perfeitamente integrados à vegetação, à sombra das quaresmeiras, ipês, palmitos, aroeiras, paus-marfim, cedros e jequitibás-rosa replantados, existiriam ambientes reservados para reuniões, workshops, conferências ou aqueles trabalhos que reclamam concentração. Esses ambientes de trabalho seriam montados no interior de grandes “bolhas” de plexiglasses moldado, perfeitamente transparentes, dentro das quais os executivos poderiam desfrutar de calma florestal sem prescindir de nenhum conforto nem da mais completa tecnologia de comunicação. Por essa razão, o empreendimento recebeu a justo título o nome de Business Towers in the Woods (BTW), apresentado em magnífico logotipo.
No domingo de manhã, os rapazes da W/Überfluss desmontaram o acampamento e embarcaram nos seus dois Land Rovers 4WD. Se não fosse a compulsão de se coçar ardorosamente, por causa das incontáveis picadas de borrachudos, estariam felizes, uma vez que levavam nos seus notebooks iMac uma campanha pronta para apresentação. Era composta de: um caderno especial de oito páginas para Folha, Estadão, Exame e Veja e o roteiro de um filme para TV cuja rodagem, se não pudesse ser locada ali na praia de Castelhanos por uma questão de prazo ou custo, poderia ser produzida em São Paulo mesmo, no Parque do Estado ou na Cantareira. A campanha atendia plenamente aos requisitos do briefing, que eram: 1) posicionar ecologicamente o empreendimento e 2) dirigir-se ao segmento dos compradores potenciais sensíveis ao verde (na época, 98,7% dos lançamentos imobiliários eram dirigidos ao segmento das pessoas loucas por árvores, flores, folhagens e panoramas verdes em geral). Todas as peças estavam subordinadas ao tema Aqui o gênio da floresta vai inspirar a sua criatividade.
Chegaram ao porto e o encontraram deserto, não havia nem mesmo os habituais pedestres e os vendedores de refrescos e amendoins. Os seus eram os dois únicos veículos que se apresentavam para a travessia. Igor Mendeli (34), o vice-presidente, comentou:
— Nunca vi isso, um domingo sem fila!
Foi só então que seus olhos desocupados distinguiram o horizonte limpo e vazio, desprovido de tudo. Estupefatos, os sete criativos desceram dos carros e se entreolharam interrogativamente, como se algum deles pudesse explicar aquilo. Primeiro pensamento de Mendeli:
– A reunião com o cliente está marcada para amanhã às onze. Se chegarmos atrasados, perderemos a conta.
“Não posso faltar a compromissos marcados, ou perder prazos para participar de negociações e concorrências, ou deixar de comparecer a audiências ou leilões” – essas eram as principais preocupações na cabeça de todos os executivos que estavam na ilha. Para eles, era enlouquecedor pensar que suas ausências pudessem se perpetuar, que seus cargos ficassem vagos e que, desse modo, seu poder se esvaísse. Mais do que a separação da família, da mulher, filhos, pais, irmãos e amantes, e mais até do que a impossibilidade de usar o próprio dinheiro e recorrer a créditos, era o sentimento de impotência, de não poder reverter uma situação, que os torturava.
Um restinho de humanidade
Na segunda-feira, quarto dia do Sumiço do Mundo, Pedro Iroquês convocou uma reunião de moradores do bairro, e quem mais quisesse comparecer, no boteco do Elias. O lugar ficou cheio, a cerveja estava quente, não faltava pinga mas ninguém quis beber. Iroquês falou:
— Pessoal, precisamos enfrentar a realidade. Só sobramos nós no mundo. Quero dizer, parece que o mundo acabou e nós aqui na ilha somos os únicos sobreviventes.
— Como você pode ter certeza do que está dizendo?! – gritou alguém.
— Certeza mesmo ninguém tem, mas até onde todos podemos perceber, não há mais sinal de terra nem de vida humana ao redor de nós. O mundo sumiu.
— Castigo de Deus! – exclamou uma mulher.
— Quem mandou duvidar d’Ele. Agora Ele veio mostrar toda Sua força! – disse um rapaz de cabelo escovinha, vestido de terno e gravata.
— Isso mesmo! – disse uma voz de tenor vinda do fundo do salão. – Ele só nos poupou para sermos testemunhas do Seu imenso poder.
— Para que a gente volte a temer a Deus... – apoiou outra voz.
— Para criar nossos filhos como manda o Evangelho...
— Esta ilha se transformou na nova Arca de Noé da humanidade – definiu imaginosamente uma senhora franzina.
Todos passaram a falar ao mesmo tempo até que Iroquês se impôs batendo insistentemente seu canivete numa garrafa e erguendo seu vozeirão:
— Calma, minha gente. Quem quiser se arrepender dos pecados, que vá à igreja, ouvir o sermão do padre. Eu convidei vocês para discutir outra coisa, que é simplesmente o que fazer. Nós sobramos, estamos vivos e queremos continuar vivos. Eu, pelo menos, quero. Por isso, pergunto: vamos ficar parados, chorando? Vamos esperar que Deus perceba que esqueceu de nós e acabe com a gente também? Repito, vamos ficar parados ou vamos nos mexer?
Iroquês fez uma longa pausa e, visto que ninguém se manifestou, prosseguiu:
— Se quisermos continuar vivos, precisamos pensar antes de mais nada no que vamos comer. Não estou pensando nas vinte e quatro mil pessoas desta ilha, Penso em nós aqui, nosso bairro, nossa vizinhança, nossas famílias. Nunca mais vamos receber comida e bebida. Tudo o que consumimos vinha de fora – sal, arroz, feijão, carne, farinha, leite, açúcar, café, farinha e macarrão. Até o gás de cozinha.
— Também não vai ter mais anzol, linha, rede, pano de vela – disse Oraides, o pescador.
— Isso mesmo. Nem ferramentas, nem motores, nem nada.
Iroquês fez uma nova pausa e continuou:
— O que eu vou dizer agora é muito importante. Daqui a dias já vai faltar comida. Vocês já viram os ricos querendo trocar bugigangas por comida. Eles perceberam que dinheiro não adianta, não tem o que comprar. Daqui a pouco eles e muita gente, toda a população, vão estar doidos atrás do que comer. E prestem atenção, essa situação vai durar para sempre. Antigamente, nesta ilha, tinha plantação de café, cana-de-açúcar e outras culturas. Tinha até pesca de baleias, que eram retalhadas aqui mesmo na Ponta Azeda. Desde que viramos estância balneária, vivemos do turismo e não produzimos mais nada. De hoje em diante precisamos nos dedicar à única coisa que importa – produzir alimentos. Escutem bem o que eu digo: ninguém mais vai receber ordenado ou aposentadoria. Isso acabou, acabaram os empregos, acabou o INSS. Dinheiro guardado no colchão ou na caixa econômica também não serve para nada. Quem não trabalhar não come! Nossa única saída é voltar para a terra e para o mar. Seremos lavradores, criadores e pescadores.
Essas últimas afirmações provocaram um frêmito geral, seguido de burburinho e intensas exclamações: a maior parte dos presentes ainda não tinha se dado conta dessa radical mudança. Iroquês esperou que a agitação amainasse e então falou:
— A primeira coisa é saber com o que podemos contar na nossa comunidade. Vamos calcular quantos alqueires ou canteiros de terra temos para plantar. Quem tiver milho, batata, mandioca ou feijão, não coma – plante. Vamos procurar mudas de verduras, legumes, frutas – do que for. E nada de fritar ovos, vamos pôr todos os ovos para chocar, queremos muitos frangos e galinhas. E atenção, galinheiros e chiqueiros fechados, nada de criação solta – vai haver muitos ladrões de galinha e, estejam certos, eles vão atacar. Peço que cada um diga àquele rapaz ali – disse, apontando para Gesualdo – o que vocês tem. Aí organizaremos o nosso mutirão. A ideia é todos ajudarem todos.
— E a pescaria? – perguntou Custódio, o mestre da traineira Fandango.
— Essa parte é mais difícil do que parece – respondeu Iroquês. Vamos ter que produzir muito peixe, vai ser a principal comida da ilha. Temos que pôr mais traineiras e canoas pescando.
— Mas não tem gelo... – lembrou Custódio – Para voltar carregado, eu preciso sair com muito gelo.
— Esse problema você terá de resolver. Como faziam os antigos para conservar o peixe? Acho que era salgando e defumando...
— Se for só para nós, o que pescamos já dá – disse Oraides, o pescador.
— Não tenham ilusão, em poucos dias as pessoas estarão dispostas a tudo para conseguir um pouco de peixe. E se não tivermos peixe para vender, nos matarão!
— Pescar para vender? Mas você acabou de dizer que o dinheiro não vale mais nada! – exclamou Custódio.
— Você trocará o seu peixe por alguma coisa de que precise – respondeu Iroquês. – Alguma roupa para as crianças, por exemplo. Ou por sal, que é algo que sempre precisaremos. Antes da invenção do dinheiro existiu o sistema de trocas, chamado escambo. Nós vamos instituir entre nós uma tabela de escambo. Por exemplo, meio quilo de garoupa vale um quilo de aipim. A tabela vai variar conforme a oferta e a procura. Se houver muita garoupa e pouco aipim, você terá de entregar dois quilos do peixe em troca de meio quilo de aipim. Essa é a regra fundamental de todos os mercados.
Pedro Iroquês refletira sobre a nova situação: as empresas não tinham mais como subsistir, quanto mais ter empregados, já que não teriam serviços ou mercadorias para vender. E a população não teria meios para comprar, mesmo que continuasse a haver oferta, uma vez que os empregos e todas as demais fontes de receita se extinguiram. De um dia para o outro, o mercado de consumo deixara de existir. Ninguém mais pagaria ou receberia as prestações de vendas a prazo. Ninguém teria mais como pagar impostos, nem o poder público teria como prestar serviços e manter funcionários. E todas as contribuições para a previdência social e os seguros saúde estavam perdidas.
Depois da reunião, Iroquês examinou com cuidado as anotações de Gesualdo e comentou:
— Começamos bem, temos até três burros e uma carroça, cinco cabras, uma vaca com bezerro, três sacos de milho, duas arrobas de feijão e bastante mandioca...
— Mas temos muito pouca terra – observou Gesualdo. — Quase nada!
— Eu já contava com isso. Tenho a ideia de propor um tipo de escambo aos donos de terrenos grandes, os ricaços dos condomínios fechados: eles nos alugam seus jardins para plantar e nós pagaremos com uma parte do milho ou do feijão que colhermos.
— Mas também podemos plantar nas propriedades abandonadas – lembrou Gesualdo. – Podemos plantar no lugar das matas porque teremos de derrubar muita mata para fazer lenha. A mata é do governo...
— E o governo não existe mais! – completou Iroquês. — Estou gostando de ver, menino. Você pensa como eu.
Iroquês já percebera as qualidades do rapaz. Ele era esperto, inteligente e sabia manejar bastante bem os conhecimentos adquiridos no curso supletivo do segundo grau que vinha fazendo em São Sebastião. Antes da reunião, convidara Gesualdo a ser seu assistente nessa mobilização do bairro para a produção de alimentos. Ele poderia ajudá-lo na atribuição de trabalhos e na organização dos mutirões que tencionava instituir.
Num puxado da sua pequena casa, Pedro Iroquês tinha arrumado um cantinho provisório para Gesualdo morar. Naquela noite, Gesualdo e Selene foram namorar um pouco na praia, apesar da escuridão e a falta de lua. Ele estava cabisbaixo e em silêncio. Ela ergueu suavemente seu queixo e viu que ele estava chorando.
— Estou com saudade da minha mãe – explicou Gesualdo. — O que será que aconteceu com ela?
Selene o abraçou, beijou seu rosto escorrido de lágrimas e disse:
— Até agora só sabemos que São Sebastião e o Brasil sumiram. Para onde foram, o que aconteceu com o resto do mundo, é um mistério.
— Minha mãe estava lá, sozinha. Eu estava falando com ela quando essa coisa aconteceu. Eu gosto da minha mãe! Não dá para aceitar que de repente ela, tudo e todos se acabaram, morreram, e só sobramos nós!
O SUMIÇO DO MUNDO
CONTINUA!
Na próxima terça-feira
Capítulo 5
Em busca da terra
onde quer que ela esteja
OS CAPÍTULOS SÃO PUBLICADOS SEMANALMENTE E PERMANECEM ON-LINE.