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Terça-feira, 15 de dezembro de 2015

O SUMIÇO DO MUNDO - Capítulo 11

O redescobrimento

ACONTECEU NO CAPÍTULO 10:

Pedro Iroquês anuncia a decisão de se aposentar no dia do seu aniversário. A data é celebrada em casa, à noite, com amigos e parentes, ocasião em que a sua sucessão é discutida. Iroquês pensa que uma nova experiência de democracia direta dará certo.

Na manhã de 9 de dezembro, os moradores de São Sebastão se dão conta de que a Ilhabela voltara a seu lugar, embora bastante desfigurada. A repetição ao revés do fenômeno tem repercussão quase tão grande quanto o sumiço, quatro meses antes. A região volta a ser ocupada militarmente e a ilha é posta em quarentena.Organiza-se uma expedição para investigar o que ocorreu e socorrer os sobreviventes, caso existam. Uma corveta da Marinha começa a ser preparada para a missão. Contudo, 3 veleiros partem da ilha, atravessam o estreito e depositam no porto 15 barbudos exoticamente vestidos. Estes são imediatamente detidos, submetidos a exames no hospital e interrogados pelas autoridades. As respostas são incongruentes: os ilhéus dizem ter nascido na Ilhabela entre os anos 1 a 5, mas o ano em curso é 2007. Gesualdo informa seu endereço em São Sebastião, que mora na Ilhabela há 25 anos e que procura sua mãe... Aquelas vítimas deviam estar perturbadas ou drogadas, são postas a dormir, talvez acordem sensatas. Mas Gesualdo escapa para a rua onde tem um emocionante reencontro com Gesuina, sua mãe. O reconhecimento é demorado, Gesualdo está muito mais velho, ambos estão com 46 anos de idade...


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O redescobrimento

Tudo isso aconteceu naquele 9 de dezembro, dia em que a ilha voltou ao seu lugar. Para manter a objetividade, este relato prossegue desconsiderando inteiramente as manchetes, as reportagens, as revelações e as elucubrações fantasiosas de jornalistas obcecados pela ressurreição da Ilhabela, o mega espetáculo que estava apenas começando.

Só na manhã seguinte a corveta zarpou, levando a primeira expedição composta de uma seleta comitiva mais um destacamento de fuzileiros navais. A informação animadora, de que os quinze “nativos” recém-chegados não eram portadores de contaminação, não impediu que fossem levados instrumentos dos mais modernos para a medição de radiações. Até mesmo detectores de minas terrestres foram embarcados.

Primeiro a embarcação realizou uma aproximação de reconhecimento, bordejando a costa oeste da ilha a uma cautelosa distância.

À sua lenta passagem, os habitantes interrompiam seus afazeres para contemplar a novidade, sem manifestar o esperado entusiasmo por estarem sendo redescobertos. Pareciam apenas curiosos. Ninguém dava pulos de contentamento nem acenava. Alguns pescadores tentavam abordar a corveta com seus barcos, mas eram gentilmente repelidos, enquanto a voz amplificada do capitão Cristiano Nagel Neto repetia pelos alto-falantes a mensagem cuidadosamente preparada:

— Atenção, concidadãos! O socorro tão esperado por vocês está chegando. Representamos as autoridades civis e militares do Brasil. Trazemos mantimentos, remédios e assistência médica. Conservem-se em ordem e muita calma. Todos serão atendidos!

Não foi possível atracar no antigo pontão das balsas, inacreditavelmente arruinado (o que terão feito com todo o madeirame?). O navio de guerra foi ancorar diante do píer, na frente da Praça da Bandeira. Gente meio ressabiada foi se juntando ali e, aos poucos, formou-se uma pequena multidão. Minutos depois, desembarcava do primeiro escaler um pelotão de fuzileiros navais, que logo tratou de afastar a gente, criando um cinturão de segurança. Foi nesse espaço que surgiu, em seguida, o capitão-de-corveta Nagel Neto, acompanhado do coronel Cardoso, do Exército, e do tenente-aviador Furquim, da Aeronáutica.

A questão de quem participaria desse primeiro desembarque tinha sido exaustivamente discutida a bordo. Por razões de segurança, decidiu-se que a comitiva seria exclusivamente militar. Nem o repórter da Rede Globo nem o bispo foram admitidos, a fim de não contrariar as outras redes de TV e as outras igrejas.

— Sou oficial da Marinha e comandante desta expedição – proclamou o capitão Nagel ao povo por meio de um megafone. — Há entre vocês alguma autoridade com quem eu possa me entender?

Um ancião de cabelos curtos e barba branca destacou-se do povo e, com firmeza, deu alguns passos em direção à comitiva. Apresentou-se:

— O senhor pode falar comigo, capitão. Meu nome é Pedro Iroquês de Araujo e sou chefe desta comunidade.

— Perdão, o senhor é o prefeito de Ilhabela?

— Não senhor. O prefeito Joano Strauss, o vice-prefeito, o comandante da PM e a metade dos vereadores estavam ausentes naquele dia 9 de agosto...

— E os vereadores que estavam presentes?

— Não deram conta do recado, capitão. Foi preciso enfrentar o pânico, buscar comida para mais de 23 mil pessoas, evitar o caos e a anarquia. Sofremos falta de tudo e tivemos de lutar contra banditismo e exploração. Mas com o tempo a sociedade se organizou e posso dizer que hoje vivemos contentes com o pouco que temos...

— Vejo que muita coisa aconteceu por aqui nesses quatro meses...

— Perdão, senhor capitão, eu me refiro aos últimos 25 anos.

Os três oficiais se entreolharam. O coronel do Exército tomou a palavra:

— Desculpe-me, senhor, como é mesmo o seu nome?

A multidão, que estava muito atenta, irrompeu em coro, como uma torcida ensaiada:

— Pedro Iroquês! Iro-quês! Iro-quês! Iro-quês!

O oficial levantou os braços agradecendo e se dirigiu a Pedro:

— Vejo que o senhor é bastante popular aqui. Eu só gostaria de esclarecer essa questão de datas. Por favor, para o senhor que dia é hoje?

— No nosso calendário, hoje é 10 de dezembro de 25.

— Mil novecentos e vinte cinco?!

— Não! Zero zero dois cinco! Vinte e cinco. É que consideramos 2007 como o ano do fim do mundo e iniciamos uma nova contagem no dia 1 de janeiro seguinte. Assim, 2008 passou a ser o ano um do nosso novo calendário. No calendário velho, o de vocês, estamos em 2032.

Os militares voltaram a se entreolhar, desta vez perplexos, e Iroquês continuou:

— Nesses vinte e cinco anos, tivemos que dar duro, muito duro, aprendendo a produzir comida, improvisando roupa, inventando ferramentas, descobrindo remédios naturais e criando nossos filhos. Sem esperança alguma de salvamento. Vinte e cinco anos vividos na certeza de que éramos o que sobrou da humanidade inteira. Estamos contentes por voltar ao mundo, mas queremos ser respeitados pelo que fizemos para sobreviver.

A multidão aplaudiu com entusiasmo e os três oficiais não se contiveram, abraçaram Iroquês, cada um por sua vez, esquecendo a recomendação de evitar contato físico com os ilhéus ou no mínimo usar luvas.

Pedro Iroquês se dispôs a acompanhar o comando militar do redescobrimento numa excursão pelas adjacências, de modo que os oficiais tivessem uma primeira impressão de como estava o mundo, isto é, a Ilhabela, depois de um sumiço tão longo. Escoltados pelos fuzileiros navais, que pouco a pouco iam se descontraindo, o capitão Nagel, o coronel Cardoso e o tenente-aviador Furquim puderam registrar com seus gravadores e câmaras as transformações mais notáveis.

Enquanto isso, desembarcavam também o bispo Silvio Silva e os três agentes da ABIN. Os quatro não se distanciaram da Praça da Bandeira, preferindo conversar com os chamados “populares” que ali se achavam. Desembarcaram também os dois inspetores do IBAMA, o geólogo, o pesquisador da CNEA com seu contador Geiger-Müller último tipo. Este grupo, animado pelo repórter da Globo e confiando na proteção da escolta armada, resolveu empreender uma incursão mais profunda no território misterioso da ilha. Os parlamentares e demais pessoas convidadas pela CEIFI preferiram ficar a bordo, acompanhando o desbravamento pelo circuito interno de vídeo.

As primeiras imagens transmitidas foram chocantes. Eram as carcaças enferrujadas dos carros, começando pelas três Hilux abandonadas na Praça da Bandeira, todas depenadas, sem estofamento, verdadeiras sucatas de ferro-velho. No entanto, tratava-se de carros fabricados naquele mesmo ano, 2007. A cena se repetia à medida que a reportagem ia avançando pela Vila e proximidades. Viam-se despojos de BMW, Honda, Golf, Mercedes, Renault (havia até uma Ferrari de 1,4 milhão) de fabricação bem recente, largados em terrenos baldios ou junto ao meio-fio, todos sem rodas, alguns com mato crescendo dentro, outros servindo de brinquedo das crianças. E pelas ruas circulavam toscas carroças puxadas a burro, cavalo ou por gente mesmo. O que chamava atenção é que elas rodavam sobre rodas de automóveis. Algumas, mais leves, vagamente parecidas com charretes, usavam rodas de motocicletas. Todas as rodas, de automóveis ou motos, sem pneumáticos.

As ruas percorridas eram limpas, porém vazias e pobres de atrações, Não havia lojas, nem hotéis, nem bares ou restaurantes abertos e as poucas placas de comércio que restavam estavam ilegíveis e desbotadas pelo tempo. A reportagem entrou num animado mercado de peixes, verduras, legumes e artesanato. Lá havia bastante gente, gente jovem de aparência sadia, surpreendentemente alegre e descontraída, apesar de muito mal vestida. Tinha-se a impressão de assistir a um daqueles documentários sobre a vida urbana na Europa oriental, nos tempos da Cortina de Ferro, ou em Cuba de Fidel Castro, ainda mais porque todos os homens eram barbudos.

Mostrando as praias, o repórter global observou que estavam descuidadas porém limpíssimas, sem vestígios do óleo que costumava vazar dos petroleiros. Entretanto, não se avistavam banhistas nem crianças brincando. O repórter entrevistou dois ou três moradores e concluiu:

— Para esta gente, o mar passou a ser sua fonte principal de subsistência e também a fonte de todos os temores. Foi o mar que “engoliu” o continente e os deixou com a certeza de estarem sozinhos no mundo. Aqui ninguém vê o mar e a praia como um lugar de lazer e esporte.

Se a visão do antigo Iate Clube era acabrunhante – aquele recinto exclusivo tinha se transformado em porto e entreposto de peixe – a visita ao colégio, a antiga Escola Estadual, foi edificante. Apesar da excitação causada pela regresso do mundo e a presença dos redescobridores, as aulas estavam sendo dadas como se aquele fosse um dia normal. E todas as classes estavam lotadas. Os professores permitiram que os alunos respondessem às perguntas do repórter e dos visitantes. Nas respostas notava-se a desinibição dos jovens, mas também lacunas inexplicáveis de conhecimento. Não sabiam o que querem dizer expressões como Lula, Faustão, Edir Macedo, Dilma, mensalão, celular, micro-ondas, hacker, pré-pago, Sarney, Nintendo, Rick Riordan, NX-Zero, Ironmen, Rede Globo tudo-a-ver-com-você, vídeo-game, ponte-aérea, Mcdonalds, minimalista, desconstrutivo, George Bush, piercing, controle remoto, balada, tsunami, shopping center, 3-D. E o mais espantoso, só um dos garotos sabia o que é Coca-Cola, lembrou-se de ter visto a garrafinha no Museu da Pré-História, mas não conhecia o sabor.

O desaparecimento da floresta confrangia o coração dos amantes da natureza. Os ecologistas militantes e os turistas que conheciam a ilha tiveram o desgosto de ver aquelas montanhas, antes majestosamente cobertas pela mata atlântica, agora transfiguradas em prosaicas plantações de batata, mandioca, milho, cana e banana.

Quando a primeira expedição regressou a São Sebastião, na tarde do mesmo dia, as imagens captadas pela Rede Globo já tinham sido transmitidas a todas as emissoras de televisão do país, inclusive as públicas, e foram retransmitidas para o mundo inteiro. Alguns comentaristas internacionais observaram que a aceleração do tempo, tão dramaticamente comprovada na Ilhabela, era a primeira manifestação palpável, em grande escala, de um fenômeno já admitido em ensaios acadêmicos sobre a relação espaço-tempo. No entanto, a ocorrência mais espantosa continuava sendo a desmaterialização seguida da materialização, no mesmo espaço mas em outro tempo, de uma grande porção de terra e de seres vivos, coisa até então só imaginada pela mais fantasiosa ficção científica.

Assim que recebeu os relatórios de observação dos especialistas enviados na primeira viagem, a CEIFI designou subcomissões setoriais para estudá-los. De um modo geral, os relatórios produziram uma impressão tranquilizadora: não havia traço de atividade sísmica ou contaminação radiativa na ilha e a população não demonstrara ansiedade, pelo contrário, mantinha-se numa atitude amistosa porém algo reservada. A esperada corrida aos produtos de primeira necessidade levados pela corveta não aconteceu. Uma vez colocados à disposição da população sobre bancas armadas na Praça da Bandeira, os mantimentos industrializados e os produtos de higiene despertaram mais curiosidade do que desejo. Os sacos de sal, açúcar, arroz e feijão sumiram rapidamente, mas sobraram as latas de presuntada, feijoada e os pacotes de biscoitos – pouca gente apreciava ou conhecia esses produtos. As latinhas de refrigerantes, cerveja e inseticidas eram olhadas com desconfiança e o público jovem parecia ignorar para que servem absorventes, creme de barbear, barbeador, creme dental, xampu, desodorante, filtro solar, camisinha, sabonete, saca-rolha e abridor de latas. Os organizadores da doação lamentaram não ter levado suficientes pares de sandálias havaianas e se espantaram com a quantidade de pedidos de espelhos, facas e panelas. E também de bolas. Essa procura fez lembrar os presentes que se costumam oferecer a índios arredios para atraí-los ao contato com a civilização.

Nos dias subsequentes, a corveta e outros barcos realizaram numerosas travessias para colher novas informações estratégicas, enquanto a quarentena era estritamente mantida. Só autoridades policiais e militares podiam desembarcar na ilha. Um batalhão de sapadores do exército foi designado para reconstruir o embarcadouro das balsas e, enquanto isso, as lanchas de desembarque da Marinha depositavam veículos, combustível e suprimentos na Barra Velha, logo ao lado.

Em São Sebastião, aglomeravam-se parentes e amigos de gente que em 9 de agosto tinha sumido juntamente com a ilha. Aflitos, alguns exaltados, clamavam por permissão para visitar a ilha e localizar seus queridos. Mas as visitas só seriam permitidas quando se apresentassem condições de segurança e as autoridades pediam uma paciência que pais, mães, esposos e filhos não eram capazes de manter. Nutrido pela mídia, o clamor cresceu, mas as autoridades ficaram irredutíveis, insensíveis até ao clássico “sabe com quem está falando” e a telefonemas de Brasília ou do Morumbi. Do outro lado, havia pessoas que desejavam voltar ao continente e ao convívio dos seus; também faziam pressão, mas eram poucas, como o publicitário Igor Mendeli, alguns passageiros remanescentes do Costa Chimera e outras que não conseguiram se integrar na nova vida nem se conformar com a perda dos privilégios sociais que antes detinham.

O SUMIÇO DO MUNDO
CONTINUA!

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Diabruras do Senhor
 

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