Capítulos

Terça-feira, 10 de novembro de 2015

O SUMIÇO DO MUNDO - Capítulo 6

Comer é preciso
O baronato mostra seus dentes

ACONTECEU NO CAPÍTULO 5:

Era expressivo o número de empresários retidos na ilha. Estavam inconformados, sentiam-se como náufragos e mergulhavam na bebida. Os intelectuais eram em menor número, porém mais lúcidos. Eles se mantinham em assembleia permanente. Participava do grupo o famoso navegador solitário Almir Clicquet que, por não estar convencido do sumiço do resto do mundo, propôs uma expedição de busca. Ele sairia com pelo menos três veleiros oceânicos para procurar a costa do Brasil; se esta não estivesse mais lá cruzaria o Atlântico em direção à África, Depois navegaria em direção à Europa, ao Oceano Índico, ao Extremo Oriente. Na pior hipótese, se só avistasse água ou gelo, estaria de volta em três meses... A proposta foi aprovada pelo grupo e pelo Iate Clube. Dois excelentes barcos foram escolhidos e o comandante de um veleiro da Escola Naval, retido na Ilha, incorporou-se à flotilha com seu barco e toda a tripulação. Esta, composta de 18 aspirantes, foi distribuída entre os três barcos mas Clicquet insistiu em conduzir um deles sozinho. As embarcações foram abastecidas de víveres obtidos por doação ou por escambo – mantimentos em troca de óleo diesel estocado pelo Iate Clube. Poucas horas depois da partida, Almir descobriu uma clandestina a bordo. Era uma jovem de fino trato, que suplicou permissão para ficar, ela desembarcaria no primeiro porto. Contrariado, Clicquet concordou, desde que ela trabalhasse como tripulante. Era Carmen Debizet Rocha, a moça que desaparecera de casa em São Paulo na noite fatídica e, segundo os jornais, era desesperadamente procurada pelo marido.

PARA LER A ÍNTEGRA DO CAPÍTULO 5, CLIQUE AQUI.

Comer é preciso

Os primeiros cinco meses após o Dia do Fim do Mundo foram os mais duros. Era ainda muito vivo e doloroso o drama daqueles separados de seus entes queridos. E as pessoas tinham dificuldade de assimilar, de tão pesada que era a responsabilidade implícita, a noção de que a humanidade tinha se reduzido àquele grupo de mais ou menos 24 mil indivíduos, apenas 24 mil herdeiros de todo o conhecimento acumulado em milênios de história, nenhum deles capaz de reproduzir e multiplicar uma fração desse conhecimento.

A necessidade de sobreviver levou à subversão dos valores pré-existentes e a sociedade foi se reorganizando espontaneamente segundo a nova realidade. No alto da escala social colocaram-se os provedores de mantimentos, a principal necessidade da população. Num primeiro tempo, eram eles os pescadores, plantadores, criadores e coletadores, aos quais se juntaram num segundo tempo os mercadores. Bem depois surgiram os artesãos, na medida em que conseguiam recuperar algo da memória e da técnica de ofícios como marcenaria, tecelagem, cerâmica, fundição, forja e fabricação de vidro. Por último, na base da escala social, estavam os que não produziam nada de material, como os professores, gestores e funcionários administrativos, ou aqueles cuja produção não era vital, como os artistas. Na nova organização social e naquele mundo exíguo, eram inúteis as ocupações como, por exemplo, a de gerente de central de atendimento, aeromoça, corretor da bolsa, corretor de imóveis, web designer, diplomata, manequim, diretor de marketing, enólogo, empresário de bingo, bicheiro, agente da ABIN, psicanalista, golfista profissional, publicitário, assessor de imprensa, assessor de qualquer coisa, dublador de filmes, cronista esportivo, surfista, vendedor de carros e motoboy. Estes, para subsistir, tiveram de aprender alguma atividade necessária, do mesmo modo que aqueles que não tinham profissão alguma e viveram até então dos bens e privilégios que possuíam.

Na previsão de como seria a vida dali em diante, Pedro Iroquês errou quando disse que o “dinheiro não serve para mais nada”, preconizando o escambo. Nas primeiras semanas prevaleceu realmente o sistema de trocas de produtos e serviços. Entretanto, à medida que se estabelecia a nova escala de valores, na qual os produtos mais valiosos eram os comestíveis, as notas e as moedas voltaram a circular. Negociar em reais era bem mais prático e as pessoas só tinham que se acostumar com os novos preços das coisas. Pouco a pouco a população foi readquirindo confiança no real. Os preços só variavam de acordo com a velha lei da oferta e da procura e não havia uma depreciação do dinheiro que os fizesse subir. Como não havia emissão nem entrava dinheiro novo em circulação, inflação era um fenômeno que não existia. Nesse sentido, o uso do dinheiro “histórico”, antigo, que não tinha mais nada a ver com o Tesouro Nacional ou o Banco Central, foi mais vantajosa do que a emissão de vales ou dinheiro novo. Com o tempo, verificou-se que eram poucas as pessoas que dispunham de dólares, euros e yens. Como não existia nenhuma possibilidade de câmbio, essas divisas não tinham cotação e passaram a ser usadas como se fossem cédulas do real, na paridade, pelo valor de face: 1 real = 1 dólar = 1 euro = 1 yen.

De qualquer forma, o dinheiro perdeu importância porque as pessoas passaram a viver com pouco. Satisfeitas as necessidades de comer e vestir, não havia mais no que gastar. Desapareceram todas as dívidas contraídas, as prestações mensais, as mensalidades dos seguros e os impostos, assim como o consumo de supérfluos; as despesas com renovação de guarda-roupa, os gastos com shows, cinema, teatro, festas e locação de DVD; tratamentos estéticos, cabeleireiros e cosméticos, drogas e bebidas; viagens, manutenção de carro e de computador; os salários dos empregados, o clube e o personal trainer, o curso de inglês e escola particular para os filhos. E para usar um verbo predileto dos jornalistas especializados em cotações das bolsas: com a morte do turismo, o valor dos imóveis e, portanto, dos aluguéis, despencou.

A acomodação da população à nova ordem social não se deu sem sobressaltos. Os pequenos delinquentes, que foram surpreendidos pelo Fim do Mundo enquanto agiam na Ilhabela, começaram pelo roubo de combustível e os arrastões, mas depois dos primeiros dias já tinham compreendido que esse trabalho era improdutivo, assim como a atividade a que se dedicaram na sequência – arrombar e dilapidar as casas vazias dos turistas. Não havia receptadores para os produtos do roubo. Restava o assalto (de revólver em punho, eles invadiam as casas dos moradores a exigir comida) porém essa atividade durou pouco porque os cidadãos se armaram e passaram a perseguir e a surrar os delinquentes, quando os apanhavam. Naquela reduzida comunidade em que todos se conheciam não havia onde se esconder. O fato de serem forasteiros só facilitava o reconhecimento e a discriminação dos assaltantes. Alguns acabaram se rendendo, pediram trabalho e foram aproveitados na roça. Outros foram mendigar à porta das igrejas. Os durões se refugiaram na mata e sobreviveram comendo goiaba, jaca e lagartixa até que foram recrutados pelos barões.

O baronato mostra os dentes

As pessoas que tinham sido poderosas e se viram de repente despojadas de riqueza tinham a maior dificuldade de se conformar com a nova situação, de ter de trabalhar para viver, ter de aprender a trabalhar. Algumas não se conformaram mesmo e quiseram assegurar pela força a sua manutenção e seus privilégios. Organizaram-se para cobrar “direito de passagem” dos veículos e pessoas que transitavam diante de suas propriedades, geralmente mansões ou condomínios situados ao longo da avenida Beira-Mar. Depois, mais ousados, impondo-se com truculência e exibindo armas, montaram barreiras de pedágio nas entradas e saídas das duas principais aglomerações urbanas – a Vila e o bairro do Perequê. Aqueles que não se submetessem ao arbítrio eram humilhados e barrados, não podiam passar. É preciso dizer que a essa altura não havia mais polícia, tanto os guardas civis da delegacia como os soldados da PM tinham desertado e a ordem pública estava entregue à própria sorte.

A falta de repressão permitiu a escalada do banditismo. No começo surgiram dois ou três bandos, cada um demarcando seu território. Depois de alguns conflitos – os comentários na época se referiam até a mortes, não confirmadas – os bandos se unificaram sob o comando de Franz Genovesi (72), ex-diretor de uma vitoriosa empresa de planos de saúde. Ele pôs em prática uma estratégia copiada dos gangsteres americanos: primeiro tratava de intimidar os moradores de um distrito ou bairro. Indivíduos encapuzados surgiam nas horas mortas derrubando cercas, devastando plantações, arrancando mudas, incendiando paióis e afundando barcos. As pessoas que tentavam se opor à destruição eram espancadas. Em seguida surgiam os “salvadores”, aqueles que, dando tiros para o ar, punham os “vândalos” em fuga e prometiam proteção: “essa selvageria não voltará a acontecer enquanto nós estivermos vigiando”. Para garantir a vigilância, os vigilantes reclamavam o pagamento de uma mensalidade, geralmente uma parcela dos gêneros produzidos pela comunidade “protegida”. O vandalismo era encomendado aos “manos do mato”, como eram chamados aqueles delinquentes que tinham se escondido no mato e que, finalmente, ao serem contratados pelos vigilantes, tinham encontrado uma ocupação compensadora.

Apesar de amedrontada, a população relutava a se submeter ao jugo desses bandoleiros. Depois de organizar a defesa de sua própria comunidade, na Ponta Azeda, e conseguir repelir um primeiro ataque, Pedro Iroquês convocou uma assembleia geral dos habitantes de Ilhabela, isto é, do mundo. Os bandidos postados nos pedágios não se atreveram a impedir a passagem das pessoas que, em grupos compactos, se dirigiam à Praça da Bandeira, fronteira ao píer da Vila. Subindo ao teto de uma Toyota Hilux abandonada, munido de um porta-voz, Iroquês falou:

— Concidadãos! Como se não bastasse a enorme tragédia que vitimou a todos nós, precisamos enfrentar agora essa pequena máfia de gente que nos rouba e quer viver às custas do nosso trabalho. Eu disse pequena máfia e ela é pequena mesmo. Não é gente da nossa comunidade. Sabemos quem são, onde estão, quantos são. Por isso, não vamos ficar amedrontados, esperando os próximos ataques, vamos caçar e prender esses bandidos! Eles não tem onde se esconder. Nossa terra ficou tão pequena...

Pedro Iroquês esperou que amainassem os aplausos e os gritos de aprovação e concluiu:

— Vamos ser práticos. Vamos organizar agora uma milícia para essa caçada. Os homens que quiserem se alistar, que se apresentem aqui para o meu secretário Gesualdo. E também peço armas àqueles que quiserem emprestá-las.

Esta foi a primeira manifestação cívica registrada na nova história da Ilhabela. E nunca mais houve outra tão rápida e tão unânime. Pedro Iroquês pode organizar quatro pelotões compostos de 24 homens aguerridos cada um, todos armados com pistolas, revólveres, pica-paus, trabucos antigos, porretes e facões. Gesualdo registrou todas as armas num caderno, assim como a munição recebida, pensando na posterior devolução aos proprietários. Alguns destes relutaram, só entregando o armamento depois de serem informados de que não seriam multados pelo porte de armas clandestinas – a proibição de armas era coisa da legislação do Brasil, país extinto.

Naquele mesmo dia os pelotões armados destruíram as barreiras de pedágio e montaram guarda nos locais para impedir que fossem reconstruídas. Outros milicianos passaram a patrulhar as ruas, no que eram saudados e apoiados pelos moradores, que colaboravam assinalando a presença de pessoas estranhas. No dia seguinte, o comandante em chefe dos bandoleiros, Franz Genovesi, foi surpreendido e preso em sua própria casa, no condomínio Royal Residence, e encarcerado numa cela do antigo distrito policial. E deu-se o cerco ao QG dos seus capangas, que tinham se apossado do Pindá Iate Clube. Depois de algumas escaramuças à entrada do clube – felizmente sem vítimas – e uma tentativa frustrada de fuga pelo mar, os bandidos se renderam. Não passavam de 18 indivíduos. Como não havia espaço para tanta gente na cadeia pública, foram todos encarcerados no próprio Royal Residence que, por ser murado, facilitava a vigilância.

Uma nova assembleia popular foi convocada para decidir o que fazer com os delinquentes capturados. A participação foi entusiástica, num clima que evocava a euforia popular da Revolução Francesa vitoriosa, isto é, aquela encenada nos filmes históricos. Apesar de alguns gritos exaltados sugerindo forca e paredão, e também “soltem numa canoa sem remos no meio do mar”, foi discutida e aprovada por aclamação a proposta de Pedro Iroquês: os bandidos ficariam confinados naquele lugar em que já estavam e seriam obrigados a prover a própria subsistência, cultivando e plantando o extenso terreno do condomínio, para o que receberiam mudas, sementes e instrução. Aqueles que se recusassem ao trabalho permaneceriam presos na cadeia pública. Depois da decisão, Iroquês voltou a falar:

— O que acabamos de fazer aqui é um julgamento em praça pública. Uma espécie de justiça de guerra, baseada apenas no senso comum, sem processo, sem leis, sem advogados. Fizemos isso porque não existe mais um poder judiciário. Como também não existe mais polícia, nem administração pública. O Fim do Mundo acabou com as instituições necessárias à vida em sociedade. Nós só estamos seguindo costumes, regras de conduta e mandamentos religiosos que herdamos do mundo passado. São normas que não têm porque prevalecer. Na verdade, não existem leis, nem regras ou governo a obedecer, estamos em pleno caos! Se estou aqui falando para vocês é porque as circunstâncias me deram alguma liderança, mas eu não significo nada, não tenho autoridade alguma. Como cidadão, como membro da nossa pequena sociedade, desejo fazer um apelo a todos os homens e mulheres capazes. Gente, vamos formar grupos de trabalho para organizar a nossa vida, educar os nossos filhos, tratar da nossa saúde, restaurar os serviços públicos, regular as atividades econômicas...

Do meio da multidão ergueu-se a voz de Rodrigo Fragoso Telles, o historiador:

— Muito bem! Mas tão urgente quanto tudo isso é resolver como vamos nos governar. Quem terá o poder de mandar quem fazer o quê? Seremos uma democracia representativa? Democracia direta? Vamos eleger um rei? Teremos um ditador? Ou seremos uma anarquia, uma sociedade sem governo?

Quando o alarido que se seguiu baixou de intensidade, Pedro Iroquês respondeu:

— O senhor tem toda razão. É preciso instituir alguma autoridade. Como estamos em estado de emergência e não temos como organizar uma eleição, proponho que marquemos uma nova assembleia geral. E essa assembleia escolherá um dirigente dentre os candidatos que se apresentarem na hora.

E assim foi feito. Dali a quatro dias, em 22 de fevereiro, reuniu-se a nova assembleia geral, da qual só não participaram os enfermos, os muito velhos e as crianças. Por sugestão do cientista político Laerte Mattos, adotou-se um sufrágio por caucus, como no sistema eleitoral das prévias americanas. Ele mesmo explicou ao povo o sistema.

— Durante as próximas duas horas aqueles que quiserem se candidatar se postarão em pontos separados a uma boa distância um do outro e, de cima de um banco ou caixote, falarão de seus planos de governo. Nós todos, os cidadãos, circulando pela praça, ouviremos cada um. E à medida que gostarmos mais da proposta de um dos candidatos, ficaremos parados perto dele. Assim se formarão grupos de pessoas junto ao candidato de sua preferência. As pessoas de um grupo terão toda a liberdade de mudar de ideia e ir se reunir a outro grupo. Ou atrair amigos para que mudem de lado. Vale tudo, menos a coação. No fim, faremos a contagem de quantas pessoas estão em cada grupo. Será vencedor o candidato que tenha o maior grupo de simpatizantes.

Vários candidatos se apresentaram mas, ao cabo da primeira hora, sobravam apenas dois, polarizando a massa: Pedro Iroquês, que expunha um programa de ações práticas nas áreas de abastecimento, trabalho, saúde pública, educação, energia e limpeza pública (desde o Dia do Fim do Mundo cessara a coleta de lixo); e Doroteo Paz (38), pastor da Igreja do Deslumbramento Transcendental, cujo discurso procurava incutir no eleitorado o temor ao Todo Poderoso e o arrependimento “por nossos pecados que escancararam as portas do mundo para que Satanás pudesse entrar e fazer o tremendo mal que fez”. Sobre o que pretendia fazer na prefeitura, isto é, no governo, não dizia nada, apenas repetia o veemente sermão que já vinha pregando dentro do seu templo.

O SUMIÇO DO MUNDO
CONTINUA!

Na próxima terça-feira
Capítulo 7
A velha história se repete

OS CAPÍTULOS SÃO PUBLICADOS SEMANALMENTE E PERMANECEM ON-LINE.