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Publicado: Terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Conto de Natal - 2016

Conto de Natal - 2016

Em grandes centros, como também em menor proporção no interior, as pessoas, aquelas que dependem do trabalho para sobreviver, por se originarem de famílias carentes, enfrentam toda espécie de sacrifícios. Para a heroína deste conto, escapou-lhe tão somente a desnecessidade de servir-se diariamente do penoso transporte público.

À falta de melhores opções e pela necessidade de ao menos sobreviver, levam-nas a sequer poder escolher a quais afazeres se apegar.

Muitas vezes, enfrentam trabalhos não condizentes com uma postura física adequada para tal.

Bem assim, por sinal, a situação de dona Eufrásia.

Aos 55 anos, embora de penúria quase extrema, experimentara sorte talvez menos dura na condição de empregada doméstica. Ao depois, no entanto, obrigara-se com o tempo a se fazer mera lavadeira. Atendia a vizinhos e a outros nem tão perto. Ainda existem senhoras de quem se diz costumeiramente que lavam roupas para fora. Exatamente, essa a situação. E minimamente remuneradas. Além de que, não levava ela em conta o acentuado prejuízo à própria saúde no geral e particularmente à coluna, de tanto inclinar-se e movimentar os braços. Ela, dona Eufrásia,  já de si mesma combalida.

Como entender tanto sacrifício e resignação? Eis que daquela boca jamais saíra um “ai”, seja de dor, seja de cansaço, seja de revolta.

O que nela sustentava tanta pertinácia, para não se dizer teimosia, eram seus dois filhos.

Nesses três personagens se resumia todo o componente familiar.

Seu Álvaro, cônjuge e pai, fora acometido de moléstia insidiosa que, quando identificada, o mal estava por demais adiantado e o levara a sucumbir de vez.

O mísero valor de sua aposentadoria, feita então pensão da esposa, juntava-se aos trocados obtidos como lavadeira.

Na contraposição de tanto infortúnio, a aplicação dos meninos na escola era o verdadeiro sustentáculo pelo que dona Eufrásia fingia não se cansar nem mostrar abatimento.

Alunos exemplares nos cursos anteriores, ao atingirem idade para nível superior, André optou pela área de medicina e Wilson viu-se feliz com a da educação física, inclinação originada em fazer-se atleta capaz de se lançar em competições. Exímio nadador. E começaram a surgir as primeiras medalhas. A excelência nessa especialidade lhe facilitou a obtenção fácil de patrocinadores.

André, dois anos mais novo, diplomou-se com louvor e galhardia. Recomendado desde o primário pela sua aplicação e determinação, granjeou clientela com rapidez.

Realizados e de renda própria, tinham já liberado a genitora de seus sofridos afazeres, inclusive por acomodá-la em casa própria, conquanto pequena. Quiseram os filhos proporcionar-lhe o conforto de contar com uma empregada doméstica e até de pajem, mas ela recusou de pronto, tanto mais sob argumentar, quase num tom de chiste:

“Se eu parar eu morro”.

Mesmo assim, com o tempo, André e Wilson proporcionaram-lhe conforto pleno, com casa maior em condomínio de alto padrão, regalia que a contragosto aceitara, apenas para não desagradar nem frustrar o carinho dos filhos. 

Somente a essa altura, dona Eufrásia revela outro anelo, além daquele de já ter conseguido possibilitar sustento e futuro aos meninos – assim ela se referia aos filhos perante terceiros – o sonho de comandar uma creche.

Os irmãos tentaram demovê-la desse intento. Debalde. Sustentava aos dois que, nesse desiderato, ela se realizaria de vez. Chegou a revelar que, no fundo, sentia-se como que certa acovardada em sua comodidade perante tanta carência do povo humilde, as crianças em especial.

Adquiriram então, André e Wilson, um casarão razoavelmente conservado e nele, com alguns retoques, se instalou a sonhada creche. Tanto mais que, exigência da mãe, a instituição ficara nos arredores ou pelo menos próxima do bairro de sua antiga moradia.

Num dia de outubro, os dois escolheram data para inauguração. Seria naquele mês, depois do dia 15. Ela disse não e que esperassem um pouco.

Banda de música, fanfarras, discurso do secretário municipal de Saúde, bandeirolas multicores, missa solene. Em seguida, farta distribuição de brinquedos, lanche coletivo servido em quantidade, com sobras ao depois aproveitadas. Ao instante do descerramento da fita inaugural, Dona Eufrásia chamou para perto de si os dois filhos a esse ato procedeu-se a três mãos.

A Creche “Álvaro Nascimento”, homenagem ao genitor, expandiu-se com o tempo e se fez instituição modelar no gênero.

Sustento e assistência a crianças carentes nascidos do fruto primário de roupas lavadas com esmero e amor.

Era a manhã ensolarada de mais um dia 25 de dezembro.

Natal.

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