Ocaso
Ela sempre esteve ali – a antítese da vida. Desde o primeiro vagido – o urro provocado pela primeira dor, garantia de outras mais.
Não sei dizer quando a notei escondida num canto, como um rebento parasitário semelhante a um bulbo.
Certamente viveu submersa no grande lago infantil de difícil travessia, na turbulência das tempestades púberes ou prisioneira, quando travestida em cavaleiro de armadura e lança em punho, eu desafiava o mundo em batalhas alucinantes contra moinhos de vento.
É possível que tenha se alimentado de nesgas de sonhos, fiapos de ilusões, alegrias fugidias, das parcas generosidades recebidas ou das fugazes conquistas – tornadas fracassos nos embates seguintes.
Teimosamente se omitiu no perpétuo movimento do subir e descer que embala a vida, como o sussurro do mar. Calmo e inofensivo - irreconhecível durante as tormentas. Permaneceu ali, á espreita, oculta no tempo de se fazer presente.
Ou, ainda, pacientemente acalentou desencantos e desamores, na esperança do acolhimento fácil.
De certo, no entanto, é que um dia dei por ela abrigada nas sombras. Foi o sinal.
Como planta rasteira se alastrou pelo chão, lentamente e aos centímetros. Ganhou os cômodos e subiu pelas paredes, trazendo consigo um forte cheiro de mofo.
Manifestou-se na poeira dos móveis, nas cortinas em tiras, nas janelas embaçadas, nas brancas toalhas transmutadas em creme - nas louças descascadas.
Fez-se presente nas lembranças distantes dos risos infantis, dos balões coloridos, dos ancestrais e amigos ausentes, das fragrâncias, sensações e sabores perdidos.
Não me lembro quando a vi pela última vez. Da cadeira cativa virada para fora, eu contemplava os intermináveis nascer e pôr-de-sóis. Tantos que perderam a identidade. Tão iguais que já não sinalizavam qual era um, ou qual era o outro.