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Publicado: Domingo, 11 de novembro de 2007

Zen

Crédito: Google Imagens Zen
Entre um mantra e o nada, preferia o mantra. Impossível tarefa mais infecunda que trazer o vácuo ao pensamento. Pelo menos o mantra era alguma coisa em que se concentrar.
 
Pensar o nada já é pensar algo, dizia para si mesmo enquanto sorvia o chá verde em goles curtos. Tinha mais 14 dias pela frente, sozinho na casa sem móveis, e nada iria demovê-lo da viagem interior que se prometera. Qualquer estalido ecoava na sala de lajotões, com suas janelas abertas à arrebentação do mar. Ninguém ali além dele e sua intenção de auto-resgate.
 
Ontem havia passado o dia todo na praia, controlando a respiração, puxando o ar lenta e profundamente, sentindo a musculatura abdominal em seu trabalho de encher e esvaziar os pulmões. Estava pronto para abandonar o corpo, para as viagens astrais e todas as demais promessas dos guias iogues e de esoterismo. O corpo deixaria-se levar, já a mente... era estafante manter-se imóvel transcendendo a escuridão dos olhos fechados. Missão ingrata parir mandalas nesse breu. Olhar o pensamento se formar, pensar sobre o pensamento, deixá-lo gentilmente desfazer-se no império da insubstância.
 
Sentiu duas mãos sobre os olhos. Delgadas, lisas. Mãos de mulher, indefinida mulher. Apalpa um pouco, sondando a pele e as veias. Agora nem tão indefinida assim.
 
Tá achando que faz surpresa. Se soubesse o quanto incomoda, aparecendo nessa hora de busca e de definição, não faria mais isso. Tínhamos combinado esse recesso, ela mesma é quem propôs. Não pode botar a perder a chance de nos tornarmos indivíduos outra vez, por mais espinhosa que seja essa vereda. Por que ceder agora, a meio caminho?
 
Foi bom enquanto havia fogo e glória, o fogo dos instintos e a glória deles satisfeitos. Eu brindo com chá verde aos nossos dias cor-de-rosa, o avesso dessa coisa morna a que nos reduzimos. Era quando a possibilidade da sua vinda, o seu bater na minha porta trazia tudo o que uma mulher podia trazer a um homem.
 
Manteve a espinha ereta e o coração tranqüilo, como diz a música de uma época que ela teimava em trazer à superfície. Já ele aceitaria mais conformadamente a idéia de que se fechara um ciclo, e que não poderiam se pertencer de novo. Fez que não a reconhecia. Pensou em dizer outro nome de mulher, pra cortar de vez qualquer esperança. Faltou coragem, se sentiria um cafajeste. A respiração entrecortada da mulher em sua nuca exigia reação dele. Tinha de dizer alguma coisa, por menos que houvesse o que falar. Foram os quinze segundos mais demorados de todos os tempos.
 
- Clarice. Como me achou aqui?
- Vim seguindo as gaivotas.
 
As mãos de Clarice deixaram de apertar seus olhos para descer aos ombros, enlaçarem seu peito e o puxarem do tatame em que estava. Sussurrou no seu ouvido um trecho da música preferida naqueles anos de sonho. Aos poucos foram formando os dois uma mandala de aros de carne, yin e yang na sala de ecos, dizendo mantras obscenos e umedecendo as lajotas.
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