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Publicado: Quinta-feira, 2 de março de 2017

Virô Brasil!

Virô Brasil!

 Na culinária do Brasil cabe tudo!  

Somos um povo mestiço de alma e coração, de forno e fogão. 
 
Não dá pra falar de comida brasileira sem pensar na mestiçagem do sabor e na alquimia de elementos que vem de diversas partes do mundo porque o Brasil é um país plural feito, no início, mas só no início mesmo, de índios, portugueses e negros.  Prova disso é que já se vão 400 anos que os holandeses aportaram por aqui e no nosso Nordeste de Recife e Olinda deixaram não só olhos azuis, mas um pedaço do seu jeito de comer. Comida é cultura afinal. 
 
Só que a coisa não para por aí. A história conta, ainda que em tom de romance, que com a Corte Real vêm os costumes culinários mais refinados. Só que comer, a gente sempre comeu. Então, tudo é questão de mistura e aprendizado mesmo.  
 
Que seja só para dar ares de conhecedores da história, lá pelo XIX chega a família real e, mais uns anos, a independência e a libertação dos escravos. Nem por isso quem está aqui resolve ir embora, porque da América à África há um Atlântico a percorrer.  Mas a ideia é branquear o povo do Brasil e assim se abrem as fronteiras para a vinda das peles claras. Com elas vêm também a boca e o estômago de italianos, espanhóis e alemães a quem logo se juntam outras bocas e novos hábitos de japoneses, sírios e libaneses.  Isso é o início dos 1900. E foi nesse século, o de número vinte e das grandes guerras, que vieram judeus de diversas nacionalidades, vieram árabes, armênios, russos, romenos, poloneses, húngaros, chineses, coreanos... Foram vindo... E têm vindo... Já no 21, somos agora haitianos, sírios, argentinos, chilenos, bolivianos, somos muitas nacionalidades... Quem não tem um amigo de cada lugar e se diz brasileiro não tem amigos, não se abre e perde o melhor.  Essa é, pois, a nossa grande graça. 
 
Aqui, entre trancos e barrancos, vivemos lado a lado. Nem sempre cordatos, nem sempre cordiais, já nos avisava há tempos Gilberto Freire. Triste é que, ainda hoje dá pra separar a casa grande da senzala sem qualquer dificuldade, o que não dá pra separar é o arroz do feijão. O que aqui se põe no prato é igual com diferença.  
 
No Brasil, o melhor peixe é do pescador, a melhor fruta é a do quintal. O melhor doce é o daquela senhorinha mineira que mora virando a esquina e naquele “conventinho” de freiras enclausuradas tem a melhor bala de café do mundo. O queijo fresco da dona Maria custa só um real e, psiu!, não conte pra ninguém! 
 
E não é que, para além disso tudo, ainda por essas bandas tem cozinha internacional? 
 
É que ali pelos 60, quando a bossa era nova, chegam por esses lados, uns chefs de nome afrancesado. Vêm cá para nos dizer como é que se cozinha com toque refinado. Vêm de manteiga e nouvelle cuisine pra ensinar o que se come em padrão de quem anda de avião, porque país que se preza tem Hilton, Ritz e Copacabana Palace.  
 
Não é desfeita nem aporrinhação é que no Brasil cabe tudo. A nossa panela é um caldeirão! 
 
Brasileiro é conservador em tanta coisa, mas no prato, pelo menos na formação, não. A coisa é mais ou menos assim, se vem novidade e é gostoso, bota aí que a gente come com feijão. Ou põe leite condensado, que tudo sempre fica bom.  Ah! Como se come açúcar nessa terra de cana! 
 
Muito se fala de quem vem e fica, mas a gente viaja também.  Não nascemos passarinhos, mas foi Dumont quem inventou o avião. E ele não era brasileiro?  
 
Quando a gente manda o filho de intercâmbio ele não aprende só inglês ou alemão. Vai que volta com manias e predileções que por aqui não aprendeu. Quanta vez não traz além do chapéu do Mickey e do novo celular, uma garrafa de uísque ou um potinho de caviar? Um queijo da Serra da Estrela, um chocolate ao leite de vaca holandesa.
 
Difícil é pensar que quem se junta por mais tempo que um quilo de sal não leve e nem deixe um pouco de si, e é na comida que, apesar da resistência, vem a experiência. 
 
Depois de uma pincelada de história, já é hora de dizer que a gastronomia virou febre por aqui. É tanto curso, programa de televisão, tanta revista, tanto site, blog e gravação que no youtube tudo se acha, mas o comer de todo dia, o que faz o nosso ganha-pão, é na marmita ou no quilão.   
 
Ingredientes não nos faltam. Também não nos falta imaginação. A questão é por no prato o que alimenta, sacia e faz feliz já que comer é o prazer que nos resta e nos restaura. 
 
Estudar num só período cozinha regional brasileira e cozinha internacional é ter a oportunidade de enxergar nuances antes improcedentes. Não havia dúvidas, só a certeza ignorante de que tudo sempre tinha sido assim, de um certo jeito, e estava ali desde quando nem se pensava. Então o que parecia sempre ter sido passa a ter origem, motivo, razão, lugar, influência, sabe-se lá o que mais. Tudo passa a ser reflexão. E o ato de comer nunca mais será o mesmo. O de cozinhar também não.  
 
Entre semelhanças e diferenças, um novo mundo de oportunidades se tece numa rede inesgotável de paladares, texturas, aromas, cores e, principalmente, histórias, influências e tendências que fazem da culinária e da gastronomia uma coisa só, tão rica e generosa que só um Brasil inteiro pra caber não é o bastante. 
 
Não é preciso vasculhar baús, nem remexer toda a história para perceber o que está na cara. A gente come tudo junto e misturado, mas o nosso paladar está ainda em formação porque somos um povo que ainda não está pronto, graças a Deus! Brasileiro é assim e é assim que tem que ser, mas como é que é mesmo? A gente é mulato, branco, preto, japonês mesmo que coreano ou chinês. A gente é índio mesmo sendo boliviano e é gringo e pronto se vier com sotaque. 
 
Brasileiro come feijão, arroz, mandioca, abóbora, amendoim, milho, banana, manga e goiaba e tem um monte de fruta de nome esquisito que a gente também apreciaria se encontrasse por aí, tanto nacional quanto importada. Come peixe, carne até morrer e quase todo dia, come macarrão mais que na Itália, come sushi até de morango e pizza de brigadeiro. A gente ainda come esfirra, quibe e coxinha e todos parecem da mesma família, só que não! 
 
A mixórdia daqui é só pura confusão, nada tem de comida malfeita como quer o dicionário, ali por sua terceira ou quarta interpretação. O que tem de Brasil nesses brasis que o prato difere enquanto iguala, é o que comemos nós que somos preto, índio, branco e quem mais veio depois, numa farta e pra lá de promíscua miscigenação.  Mas, se acaba a ideia para a próxima refeição, a gente faz um virado com o que tem na mão.  Bota farinha, um temperinho e tudo fica bom. 
 
Sobre a publicação
 
Esse texto  é uma adaptação (com outro final) do que escrevi para o Projeto Integrado Multidisciplinar - PIM que encerrou as atividades do quarto e último semestre do curso de Gastronomia da Unip - Universidade Paulista, na última segunda-feira, 5/dez/2016.  Depois de todo esse palavrório, vinha um menu com harmonização, fichas técnicas e justificativas para o trabalho, que aqui não cabem ser publicados. 
 
Dedico essa publicação, em especial, aos meus colegas de grupo Cauê, Nathália, Santília e Elaine, aos demais colegas da classe atual e das demais classes que participei na UNIP (foram 3 diferentes, pelo menos);  aos nossos professores e a todos os profissionais que vivem de fazer comida no Brasil. 
 
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