Colunistas

Publicado: Domingo, 13 de janeiro de 2008

Quero só ver

Quero só ver
Abstract Eye - Richard Pousette-Dart

Quero ver seus olhos não abrirem para certas coisas que é impossível não enxergar.

Quero ver seu estômago não revirar com outras tantas que não precisam nem merecem existir.

 

Quero ver sua espinha não arrepiar ao passar pelas quarenta mil tumbas das três mil e quinhentas abadias, tentando imaginar o que aqueles seres de mármore fizeram quando o sangue ainda corria em suas veias.

 

Quero ver as ondas alfa, beta e teta do seu cérebro detendo a queda das folhas no outono e as lágrimas no adeus final ao ente querido. Quero ver seu cotovelo contornar a dor, levantar a poeira e dar a volta por cima.

 

Quero ver você cruzar os braços e largar do jeito que está, a léguas da conclusão. Quero ver você ganhar peso sem culpa e perder o peso que tiver na consciência.

 

Quero ver você dar de ombros para os que não admitem deixar pra depois. Quero ver você sentir na pele o que os livros narram, as videntes predizem, os quadros mostram, os conselhos advertem e os candidatos prometem.

 

Quero ver sua boca maldizendo a blasfêmia, difamando a calúnia e achincalhando os que lutam com afinco para fazer do mundo um campo minado.

 

Quero ver o tremor das suas mãos ao se colocarem em posição de prece, clamando para que a ira divina caia sobre a máquina que desemprega o homem e reduz o indivíduo a um feixe de estatísticas.

 

Quero ver muitas bolhas nos seus pés, contanto que a caminhada seja em busca dos seus sonhos. Quero ver muitos calos findo o dia de trabalho, desde que o esforço não signifique sacrifício e traga a merecida recompensa.

 

Quero ver seu coração disparar não só nas formaturas, casamentos e funerais, mas ao dar com a formiga carregando a folha, a casaca puída do porteiro da boate, o sol fazendo seu protocolar giro pela crosta numa quinta-feira qualquer de um lugar não pitoresco. Quero ver você gostar da vida acontecendo sem nada de importante a acontecer.

 

Quero ver você arregalar os olhos na falta de graça da lida aldeã, na frieza dos ferros-velhos, nas pastas pretas e idênticas dos corretores de seguros, no efeito sonífero dos serviços de aviso dos shopping centers.

 

Quero ver você perder o fôlego ao encontrar-se, ter todos os motivos para mostrar os dentes e nenhum para morder a língua. Quero ver você dar as costas a quem lhe fechar as portas e ficar de joelhos diante das coisas mais simples. Como um menino desenhando o pai com giz de cera.

 

Quero ver que nariz poderá continuar empinado com o raquitismo dos etíopes e a extinção dos coalas. Quero ver que queixo conseguirá não cair ante o reencontro dos amantes exilados, sob a mais estonteante das auroras boreais. Quero ver você se orgulhar da raça humana pelo que ela tem de sobre-humano.

 

Quero ver você tendo pulso para atirar longe o relógio e resolver empurrar com a barriga. Quero que você ganhe a convicção de que mais vale perder a hora que os cabelos.

 

Quero ver você respirando fundo no fim da fila, no meio do trânsito, no começo do expediente.

Quero ver você gozar de si mesmo quando falhar na cama e ter a coragem de dizer que isso sempre lhe aconteceu antes.

 

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