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Publicado: Quarta-feira, 5 de julho de 2017

Que saudade!

Às cinco e meia em ponto, o Frei Rafael adentrava o dormitório e com palmadas fortes punha todo mundo acordado. Percorria de fora a fora os corredores do dormitório e refazia o trajeto para sacudir os sonolentos renitentes. A maioria contudo se aprestava a pegar um lugar no amplo lavatório e a disputar os banheiros.

Não se tomava banho de manhã. O tempo era pouco. Logo às seis horas começava a missa e chegar atrasado era vexatório, porque todos viam e depois, no recreio, vinha a caçoada, inocente, mas evitada o mais possível pelo retardatário. Por volta das seis e trinta, seis e quarenta, após descer da capela para o térreo, agora já em fila de dois, menores à frente e em silêncio, era a hora do café.

Às sete em ponto, sempre em fila de dois, rumava-se para a enorme sala de estudos. Uma hora inteira para estudar, terminar lições ou rever matérias, um frade a perambular por entre as carteiras. As horas de estudo eram comuns e ali se juntavam maiores e menores, l20 alunos, a capacidade máxima do Seminário. Todos os anos as vagas eram totalmente preenchidas

Após o estudo de uma hora, um recreio quase simbólico de 5 minutinhos e três aulas pela manhã, entremeadas desse mini recreio. Em seguida a terceira aula, um recreio de 10 minutos e vinha a hora do almoço. Findo o almoço, aí sim, a descontração era um pouco mais demorada: 45 minutos.

Igual a essa, só outra à noite. E o programa seguia.

Geralmente suados, pois se aproveitava o recreio pós-almoço para uma pelada, exercícios na barra, fubecas ou pingue-pongue. Todos se dirigiam então para o mais sofrido dos estudos, das 13 às catorze. À tarde, mais duas aulas. Logo a seguir, banho para todos e ainda mais um estudo, de 45 minutos, antes do jantar. Dia cheio portanto.

Meia hora de recreio, o sinal convidava para a capela: reza do terço e de lá, diretamente, outra vez, para o estudo da noite, de mais uma hora (19 às 20). Outra vez, o segundo maior tempo, o recreio que se chamava de grande, 45 minutos. Jogar bola, barra fixa, pingue-pongue, correria.

Ato seguinte, capela, para as orações da noite e cama. Aos maiores, automaticamente inscritos no Grêmio Cultural, se concedia mais meia hora de leitura.

Ao rever a rigidez desse programa, nada de mais comparar-se a rotina do Seminário Nossa Senhora do Carmo, de Itu (prédio que hoje hospeda o Anglo), ao da disciplina militar.

Não se engane, entretanto, ninguém, nem se compadeça dos meninos de então – pelo menos entre os anos 50 e 56 em que lá se esteve agradavelmente enclausurado, porque esses anos foram inesquecíveis.

Não havia aula às quintas-feiras à tarde. Os que preferiam, dirigiam-se a um tanque represado, numa chácara, onde a estripulia era demais. Disputas de mergulho mais apurado ou de resistência em nado submerso, jogos com bola, numa gritaria danada.

Ia-se, pois, à chácara, os que desejassem. Aos residentes em Itu, concedia-se almoçar em casa no primeiro domingo do mês. A todos, daqui e de fora, férias anuais com a família, de apenas 20 dias, de modo que Natal e Ano Novo ficassem compreendidos no período.

Continuavam depois as férias, aspiradas e desejadas, no Sítio Nossa Senhora do Carmo. Autêntica delícia. O seu João Stucchi, saudoso, cozinheiro dos frades, era destacado nas férias para a cozinha da fazenda. Campos de futebol, tanque imenso, muita fruta, que se apanhava às escondidas, caça de pássaros e, com muita frequência, alguém matava uma cobra. No geral, aquela inofensiva, verde, dita caninana. De todo o tempo, apenas uma coral e uma cascavel.

O grupo autor da façanha, às escondidas, depositava a cobra por debaixo do lençol de alguém para se divertir com o susto do colega.

Às vezes, depois que o frade vigilante se recolhia, ensaiava-se um frege no dormitório. Frege, algazarra, como outros termos só entendidos lá dentro, além de gírias próprias só inteligíveis no colégio. Guerra de travesseiros, roubo de lençóis. Folia, mas sem gritos. Numa dessas, o Sérgio, avolumado de corpo, simulou um mergulho na cama. Ela quebrou. Foram todos descobertos e todos castigados. A mais dolorosa das punições, era ficar sem o cineminha do domingo e, aos ituanos, vedar-se a ida para a casa no primeiro domingo. Morria-se de vergonha dos pais. Sofrimento sério para a idade.

Perde-se a conta das mil histórias vividas ao longo de seis anos e meio no Seminário. Feliz de quem pode aprender dos frades carmelitas. Eles, na maioria, àquele tempo, holandeses, formados por conseguinte na profundidade e excelência da cultura europeia. Só a partir daí é que, agora, nas recordações, os antigos alunos entendem a pergunta feita a si mesmos, a de que como se poderia receber aulas de latim e de grego aos treze, catorze anos? Um sistema, no curso de humanidades, da maior seriedade e responsável pelos frutos colhidos aqui fora. Em qualquer escola, pós Seminário, o aluno era visto como especial ou de inteligência privilegiada.

Às vezes, verdade; nem sempre porém. O que havia de real era a base e a solidez da formação anterior.

Foram reitores entre 1950 e 1956, o Frei Domingos, o Frei Celso Figueiredo (brasileiro, transferido de Portugal para Itu) e o Frei Rafael Hazewinkel, como o primeiro, holandês.

Algum dia a gente se ocupa dos tantos freis carmelitas com quem se teve a ventura, o privilégio e a felicidade de conviver.

Para alguns alunos, aliás, essa história de amor e comunhão com o Carmo, começara mais cedo, antes do Seminário, com o grupo de escoteiros do saudoso Frei Oswaldo Hedeman, que fizera de seus meninos um celeiro de seminaristas, alguns, estes e todos os demais, certamente, homens hoje responsáveis e atuantes na sociedade.

Por isso mesmo, a cada funeral de um desses frades carmelitas, diante do esquife, sempre ocorreu um pensamento igual, o de que aquele servo de Deus tinha lugar assegurado na glória. A maioria dos frades, na época, holandeses, deixaram a família e viveram aqui o melhor de seu empenho e de sua vocação.

Quando falecia um frade, na vida toda sob votos de castidade, obediência e pobreza, nenhuma providência maior do que a expedição de um telegrama à família, comunicando e enviando pêsames.

Não era preciso fazer inventário nem distribuir bens a herdeiros. Bens, toda a vida, os frades distribuíram no plano espiritual ao povo de Deus.

Os carmelitas estão impregnados na história de Itu.

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