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Publicado: Quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Quando eu ficar bom

Quando eu ficar bom

Tem histórias que a gente nunca esquece. Quando trabalhei como um doutor da Alegria vivi muitas experiências inesquecíveis. Lembro de uma que foi vivida por colegas meus que atuavam no Rio de Janeiro.

Nem sempre éramos recebidos com alegria embora fossemos Doutores da Alegria. Tinha criança que ficava com medo da gente. Sempre que os doutores Socó, Escriche e Nena – os tais colegas do Rio de Janeiro - apareciam no quarto de um menino internado com um problema muito grave, o garoto abria o berreiro e pulava no colo da mãe. Tinha verdadeiro pavor dos três palhaços. Ou seria de um deles especificamente? Isso nós nunca saberemos...

A reação do garoto era quase alérgica. Era um caso clássico de palhaçofobia! Os três palhaços tratavam de dar o fora o quanto antes, afinal uma criança que está internada num hospital já tem problemas suficientes.

A enfermeira e a mãe do garoto bem que tentavam convence-lo de que os palhaços não eram inimigos e que só fariam aquilo que o menino autorizasse, mas ele não dava ouvido nem a enfermeira e nem a mãe. Sempre que os palhaços chegavam, ele abria o berreiro com convicção.

Essa história repetiu-se por três vezes consecutivas. Na quarta vez, o menino baixou um pouco a guarda, não sei se foi por causa da conversa da mãe e da enfermeira sobre a boa índole dos palhaços ou, pela simpatia dos três besteirologistas ou, por estes dois fatores associados ou, se por nenhum desses fatores. O fato foi que naquele dia o menino apenas choramingou e fez certa manha. Os palhaços perceberam a brecha e tentaram ir mais adiante, sempre com muita cautela, pois reconheciam que estavam caminhando sobre um terreno minado.

Não ousaram entrar, ficaram bem na porta do quarto lavando as mãos. Não usaram uma pia qualquer, mas uma imaginária e no lugar do sabonete, bolhas de sabão. Os três faziam bolhas de vários tamanhos e se divertiam lavando suas mãos sempre com o rabo-de-olho na criança. Para surpresa geral o garoto havia se distraído tanto com as bolhas que havia se esquecido de chorar. Os palhaços percebendo nova brecha ocuparam o terreno. Esticaram a cabeça para dentro do quarto do menino e perguntaram:

- Caiu alguma bolha no seu colchão?

A sorte estava lançada! O menino olhou para os palhaços com surpreendente naturalidade e respondeu:

- Palhaço, eu vou embora.

Os palhaços perceberam que poderiam avançar um pouco mais e, sempre com cuidado de quem limpa cristal, chegaram mais perto do garoto e perguntaram:

- Quando?

O menino continuou sereno, nem sinal daquele velho pânico costumeiro, e respondeu:

- Quando eu ficar bom.

Os palhaços se deram por satisfeitos com a resposta e se despediram do menino.

Conversando com os médicos do andar onde estava internado o garoto, os palhaços ficaram sabendo que  seu prognóstico não era nada animador.

Eles se reencontraram várias vezes e a cada novo reencontro o menino anunciava a despeito do prognóstico médico: “Palhaço, eu vou embora”. E o palhaço perguntava: “Quando?” “Quando eu ficar bom”. A cada novo encontro, o mesmo anúncio, a pergunta repetida e a resposta óbvia.

A resposta do garoto seguia uma lógica cartesiana impecável, mas o que não é nada lógico nem cartesiano é a sua certeza de que ficaria bom. Essa certeza vem de outro lugar.

Se como já diagnosticou Guimarães Rosa, tudo o que existe, inclusive os fatos, são apenas a ponta do mistério; então essa certeza do garoto era o hálito do mesmo mistério. Vinha de lá.

Em tempo: o garoto ficou bom.

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