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Publicado: Terça-feira, 23 de maio de 2017

Pegando carona - Parte 2 - Por Cassiel Isla

Pegando carona - Parte 2 - Por Cassiel Isla
Pode parecer uma joia, mas é uma cãibra de tanto pedir carona

Em continuação ao relato da aventura que vivi no meio do ano passado e para reiterar minha crescente vontade de fazer novamente, deixo o texto do meu amigo de viagem, Cassiel Isla, que me encorajou e ajudou a despertar esse desejo em mim.

"Engraçado como o tempo acaba se tornando uma coisa só quando a gente joga todos os momentos nesse liquidificador maluco que é a vida. Quatro anos ou mais idealizando sentidos, gestos, situações e em apenas 30 minutos sobre o mar de concreto, ele se realiza.

O Sol reinava em cada parte do dia. Havia vento, que talvez nos empurrava cada vez mais para longe daquele aglomerado. Das caras fechadas. Dos ruídos ensurdecedores. Das marcas. Das cores para chamar a atenção. Para consumir. Devorar. Se empanturrar e horas depois acabar mórbidos numa cama com a ressaca do nosso corpo não aceitando nada daquilo que nos oferecem.

Os olhos agora olhavam para a frente e ahhhh, como deixar tudo aquilo para trás era animador. Mesmo sabendo que acabaríamos em outro mar de pedra, a sensação de movimento já era libertadora. Estender o dedo, mostrar a placa e apenas se entregar ao destino, talvez tenha sido um surto ou delírio, mas o coração vibrava. Isso preenchia tudo.

Enquanto carros passavam vorazes por nós, alguns rostos ditavam o ritmo da nossa história. Senhoras em carros luxuosos nos olhavam com espanto. Alguns homens olhavam com cara de negação. Pessoas simpáticas com os carros cheios lamentavam a oportunidade. E outras tantas pessoas olhavam com um cara envergonhada. Um sorriso amarelo. Um desejo ardente de parar e ceder, mas se verem amarrados pelo medo, indecisão, pelo que nós consumimos de terror a cada momento que respiramos. E lá se iam. Virando pequenos pontos metálicos no horizonte.

A parada

Depois de dezenas de carros passarem, pensei comigo mesmo e cheguei até a comentar “Essas pessoas ricas jamais que vão parar, tem muito a perder”. De fato, num sentido acumulativo tinham. Foi num desses momentos que uma caminhonete cabine dupla passou por nós. Eu fiz um gesto de por favor, abracei uma mão sobre a outra, mas logo ignorei. De repente, o cara que é motivo desse texto ter tantos “nós”. Marcelo, me cutucou e me fez olhar para trás. E lá estava o monumento valioso, estático, esperando que nossos corpos pulassem feito crianças para dentro. Nesse momento, nesse exato momento, a vida se preencheu de sentido. Eu não escutava mais o zumbido de outros carros passando. Não escutava mais minha respiração ofegante. Meus passos, cada vez mais largos, me lançavam rumo ao objetivo. Eu pegava impulso em cima daquele concreto cinza. Eu estava me jogando para a vida e para o que ela tinha de mais desconhecido a me oferecer. Eu não sabia quem estava ali a frente, mas eu também já não sabia mais quem eu era.

Chão de estrelas

Ao entrar os cumprimentos foram rápidos, não havia tempo para cerimônias. Luís era seu nome. Tinha cerca de 55 anos, empresário, com mais de 110 funcionários. Tinha visões de meritocracia. Não acreditava que as pessoas precisassem de assistência. Já foi pobre, morou na favela e conseguiu dar a volta por cima. Ao mesmo tempo, o carro do Luís estava cheio de mantimentos para doar para as famílias de Jarinu, que foi castigada pelas chuvas. Disse que parou pelo meu gesto, de por favor. Que nunca havia feito isso em sua vida e que se dissesse isso para sua família o chamariam de louco. Luís falava com a perfeição de quem estudou para chegar onde chegou. Luís escutava com a atenção de quem precisasse ouvir coisas novas. Enquanto eu expressava minhas ideias, via um ar de interesse. Talvez eu tenha ensinado mais do que aprendido. Talvez o contrário. Sai daquele carro, já no nosso destino, sem entender muito bem qual foi a nossa relação. Só sei que foi boa e que a sua frase ainda ecoa aqui dentro:

“Quando eu morei na favela, havia mais estrelas para se ver do que cobertor”

Eco de gritos d’alma

Ao chegar no destino ficamos aguardando o show iniciar. Muitas percepções já haviam mudado. Caminhávamos pelas ruas mais leves. Não estávamos presos a uma rotina. Não estávamos uniformizados ou indo sacrificar nosso tempo em troca do que não acreditávamos. Pelo contrário. O tempo, sagrado, era doado pelas nossas ações.

No momento do show, a energia cultivada na estrada foi multiplicada. Teco Martins, músico independente, toca com a alma e o coração. Toca com as mãos. Com os movimentos do corpo. Ele precisa da energia alheia para se sustentar. A tarde caía, a melodia acompanhava o deleitar do Sol. Pombas se equilibravam nos fios dos postes. Pessoas dançavam junto ao fim daquele momento único. Na última música, todos deram as mãos, fecharam os olhos e mentalizaram os seus sonhos. Eu queria ser sincero para desejar o que eu sempre desejei viver, mas ali, naquele instante, querer viver aquele momento todos os dias da minha vida foi mais forte. Meu objetivo não era só a estrada. Era a pulsação que a vida trazia com ela. O show acabou, mas a mistura das cores e sons daquele momento ainda ecoam na alma.

O Retorno

Após passar a noite regados de bebidas e música, era hora de voltar para estrada. Estávamos mais distantes ainda da saída da cidade, mas com a ajuda de um amigo do Marcelo, conseguimos pegar um ônibus que nos levasse o mais longe possível. Descendo na estrada novamente, o fluxo de carros era ainda mais intenso. Não sabíamos ao certo qual era o melhor lugar – se é que existia isso. Apenas fomos caminhando o mais distante possível, novamente rumo onde o horizonte se fizesse infinito. Entre mais uma porrada de “nãos”, uma Kombi velha parou. Dentro dela havia apenas um homem simples. Era um alagoano que teve problema com álcool e veio para o Sudeste na promessa de uma vida melhor. Logo afrente do volante, uma bíblia acompanhava o homem, que agora revelara ser pastor. A cada frase, alguma coisa era relacionada a Deus. Disse que havia parado para nós por que é o que ele aprendeu na igreja. A ter um bom coração e a ajudar os outros. Depois de um curto trajeto, nos deixou novamente na estrada, agora próximo de um pedágio. Enquanto caminhávamos acabei chutando uma pomba morta na estrada. Tão estranho quanto aquilo foi a breve sensação de vida e morte que tive ali. Do quanto somos insignificantes enquanto apenas matéria. O que importa de fato, é o que fazemos com ela. E eu estava fazendo o que mais queria na minha vida.

Ficamos mais algum tempo esticando os dedos e fazendo gestos implorando por uma ajuda. O céu ainda era azul, riscado por alguns restos de nuvens. Enquanto o corpo transpirava suor, Incubus tocava timidamente no celular. A cada carro que passava, a música era abafada, mas as nossas cordas vocais não cessavam. Cantávamos e sentíamos a música fazer parte daquele momento. O mundo era todo nosso, numa pequena curva de uma estrada que talvez não levasse mais para lugar nenhum.

Entre as frotas que passavam, carros debochavam e se divertiam. Um dos rapazes passou com a janela do carro abaixada e fez o sinal de um "boquete". Enquanto outro passou devagare sinalizou para gente andar até nosso destino. Outro deu seta como quem fosse parar e depois acelerou. No meio da diversão deles – e da nossa também, pois ali não havia tempo ruim – um escort vermelho parou. Era um senhorzinho, quieto que fumava seu cigarro. Nos levaria até de volta para casa. Enquanto dirigia, contara que era pedreiro e que conhecia cada detalhe da cidade pela qual passávamos. De repente, quando quase chegava no destino, parou o carro no canteiro e disse que iria mijar. Um certo medo tomou conta e num relance, resolvi deixar a porta aberta. Enquanto mijava, o senhor tentava conversar comigo, que evitava olhar para ele por motivos óbvios. Após terminado o serviço, o senhor se aproximou da minha porta e fechou. Confesso que um medo tomou conta, mas que logo foi absorvido pela clara noção de que ele também havia depositado uma confiança em nós para dar a carona.

Ao chegar no nosso destino, o senhor se despediu. Despejamos nossos corpos no banco da rodoviária. O corpo estava um pouco cansado, mas a alma vibrava e pedia mais. Não havia mais nada que eu quisesse naquele momento do que voltar para a estrada e mal saber o que poderia acontecer. Aliás, havia. Depois pedaços de pão de forma que comemos como se fosse aquele gigante almoço de domingo em família."

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