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Publicado: Sexta-feira, 23 de setembro de 2005

Pause

Outro dia fui surpreendida enquanto ajudava meu filho de 6 anos com a lição. Nós estávamos recortando notícias de jornal, e eu mostrei a ele a foto de New Orleans, uma cidade dos Estados Unidos que passou pelo catastrófico furacão apelidado de Katrina. Observando a foto da cidade embaixo d´água, eu lhe expliquei que mais de um milhão de pessoas ficou sem casa para morar. E nossa conversa foi por aí: “Já pensou? A gente chegar e não ter mais a nossa casa? Nossos móveis, nosso quarto, nossos livros, fotografias, chegar e não ter mais nada...” — eu explicava. E ele prontamente respondeu: “Ia ter que construir tudo de novo?”
O meu impulso foi revidar, explicar que não é bem assim, que tudo é muito difícil. Mas por sorte, antes das palavras jorrarem da minha boca automaticamente, imprimindo nele a minha restrita visão de mundo, lembrei do amigo “pause”. O “pause” é aquele botãozinho do vídeo ou DVD que congela o tempo por um intervalo indeterminado. Tudo pára. É como se magicamente pudéssemos silenciar os nossos pensamentos e darmos a nós mesmos a chance de escolher: queremos ou não continuar desse jeito? Queremos ou não seguir por esse caminho?
Dentro do intervalo silencioso e comprido de poucos segundos, eu escolhi agir em vez de reagir. Vi nas palavras do meu filho tanta sabedoria e esperança! Enxerguei além do jeito viciado que nós, adultos, vemos o mundo. Sim, eu sei que é uma tragédia perder tudo. O mundo desmoronou, a vida acabou, mas.... na verdade não acabou para os sobreviventes. O sol nascerá de novo a cada 24 horas, eles terão fome, sono, sentirão todas as nuances de raiva, desespero, medo, tristeza, autopiedade. Mas depois, passados alguns dias, ou meses, talvez anos, ou mesmo durante o período de escuridão, terão brechas de esperança e euforia, sentirão o frescor do recomeço e a força poderosa da reconstrução. E talvez seja isso o que o meu filho intuiu. Com seus poucos anos de vida, o seu repertório de negativismo e desesperança felizmente ainda é escasso. Ele não foi contaminado, por enquanto, pela onda de tragédias sem fim que sabotam nossa profunda crença no sagrado e na beleza do viver.
O mundo adulto é cada vez mais metralhado por histórias de violência e horror. A mídia é a principal responsável. Somos cúmplices de atos criminosos, vandalismos, corrupção, catástrofes, guerras. Nossa impotência nos anestesia. Olhamos tudo pela nossa telinha, confortavelmente sentados no sofá da nossa sala, e o que fazemos? Nada. O que podemos fazer? Não sei. Colecionamos um álbum de histórias terríveis e as propagamos nas rodas de amigos, no trabalho e dentro da nossa casa. E o que isso ajuda? Mal percebemos que estamos contribuindo para aumentar o repertório negativo das pessoas a nossa volta, reforçando a crença de que o mundo é um lugar perigoso para viver. Estamos criando essa realidade, que se realimenta com nossas palavras e pensamentos. Estamos tolindo a esperança e a inocência das nossas crianças. Colocamos lenha na fogueira do horror, em vez de alimentar o fogo da alma, que sempre será maior e mais belo do que isso tudo. Oras! Se o mundo oferece suas duas faces simultaneamente, branco e preto, doce e amargo, luz e sombra, porque escolhemos alimentar apenas sua face escura? Porque teimamos em propagar a desconfiança, com palavras amargas e pensamentos desesperados?
A vida é simples. Podemos escolher alimentar a alma, celebrando os pequenos feitos, valorizando as pessoas, crescendo com as diferenças e amando incondicionalmente. Essa atitude cria uma atmosfera de esperança e confiança no nosso pequeno universo, que compõe as peças do Grande Universo, espelhado à nossa imagem e semelhança.
Se cada um de nós fizer a sua parte, sabe-se lá se num futuro próximo o mundo e a mãe natureza terão mais a comemorar do que a desdenhar.
Será que conseguiremos voltar ao nosso estado original, de confiança e inocência, acreditando que tudo é possível? De repente, emergi do meu “pause”, sorri para o meu filho e respondi com esperança: “Pois é, querido... eles terão que reconstruir tudo de novo!”.

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