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Publicado: Sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O Homem que dormia demais

Algo curioso aconteceu naquela manhã. Levantou-se da cama, porém não acordou completamente. As pálpebras não se ergueram e os olhos não vislumbraram por si mesmos o raiar do dia. Entretanto, conseguia ver tudo normalmente ao seu redor.
Por um instante lembrou-se dos casos de sonambulismo, nos quais uma pessoa se locomovia e até mesmo executava algumas tarefas durante um sono mais que pesado. Mas não era o caso. Sentia-se plenamente acordado, embora não o estivesse.
Lavou o rosto, mas a água fria não o despertou. Escovou os dentes como fazia todas as manhãs, mas o sabor da menta não fez com que mudasse seu estado. Vestiu seu paletó e calçou os sapatos automaticamente. Pegou a pasta de trabalho ao perceber que já estava atrasado para sair.
Na fila do metrô algumas pessoas repararam naquele homem cansado dormindo em pé na fila. Dentro do vagão, outras também perceberam que o tal cidadão dormia em pé mesmo, entre uma estação e outra. Chegaram a lhe oferecer um assento, coisa rara hoje em dia. Mas, com um muchocho, recusou a cortesia e virou-se para o lado.
Chegou à sede do Ministério e bateu o cartão-ponto como mandava a rotina. Dirigiu-se até sua mesa de trabalho, onde pilhas de relatórios e planilhas aguardavam sua supervisão. Aos colegas que lhe cumprimentaram na chegada, respondeu com um leve ronco. E assim passou a parte da manhã, entre revisões de editais e carimbos em licitações.
Na hora do almoço atravessou a rua para comprar um óculos de sol. A idéia aparecera como se fosse um sonho e na verdade tratava-se de uma ótima dica. O camelô estranhou que o cidadão de olhos fechados apenas lhe estendesse o dinheiro, sem ao menos barganhar quanto ao preço. Em sua simplicidade, pensou que estava negociando com uma pessoa que, além de cega, fosse também muda. Deu-lhe um desconto de cinco reais.
De volta ao emprego, participaria de uma reunião com os chefes de setor do Ministério. Seriam horas e horas revendo metas, planilhas, orçamentos. Reunião típica de burocratas e tecnicistas, onde o mais importante eram os números e o agrado típico ao Senhor Ministro.
A reunião foi iniciada e contava com aproximadamente 40 pessoas no auditório. Ninguém se espantou ao vê-lo de olhos fechados e com a cabeça pendendo para a frente, lá no meio da sexta fileira. Afinal, em todas as reuniões, pelo menos meia dúzia de pessoas fazia a mesma coisa. O Senhor Ministro também não achou nada de mais: estava acostumado com as reuniões junto ao Presidente, no Palácio do Planalto.
De volta à mesa do escritório, terminou o expediente com mais umas carimbadas. Recolheu alguns documentos em sua pasta, bateu o cartão de ponto novamente e ganhou a rua. Voltou com o mesmo metrô, refazendo o caminho de ida.
Chegando em casa, seu sono espetacular não permitiu que falasse com a esposa. Os filhos também não ganharam atenção. Nenhum deles reparou, pois a rotina da família era aquela mesma. Tomou seu banho quente e trocou de roupa. Sentou-se como sempre na poltrona da sala, com a televisão ligada no noticiário noturno. Apenas o gato gostou daquela novidade sonambulística. Normalmente era enxotado à primeira vista, mas arriscou-se a ganhar o colo do dono da casa. E levou.
Sentada na mesma sala, a sogra resolveu não incomodá-lo. Achou que o genro estava meio caladão aquela noite. Terminada a novela foi deitar-se. A mulher já estava dormindo, como sempre. O dia chegava ao fim e era a hora de usufruir o sono dos justos. Sono que o acompanhara durante todo o dia. Ou será que o teria acompanhado durante toda a vida e somente agora é que tinha reparado?
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