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Publicado: Quinta-feira, 9 de julho de 2015

O frio de fora e o de dentro

O frio de fora e o de dentro

Que coisa chata amanhecer no domingo com chuva e frio fustigando a janela. Um dia desse jeito é meio perdido, mal resolvido e defeituoso, meteorológica e produtivamente falando. O que influi no meu humor. Melhor dizendo, no mau humor.

Tem quem goste, achando que dias assim convidam à introspecção, balanço da vida, essas coisas. Outros se sentem mais dispostos para o trabalho. Esse negócio de frio tem sim, seus poucos momentos compensadores. Mas são delícias fugazes, que não pagam as penas de sair do banho tiritando, de pular da cama de má vontade e de espaçar, muito compreensivelmente, as ocasiões para a prática daquela milenar e prazerosa modalidade.

Imagina o inverno pra turma do circo. O vento a 80 por hora arriando a lona. A agonia dos faquires, na gélida cama de pregos. A responsabilidade dos trapezistas e atiradores de faca, tendo que manter a precisão com as mãos trêmulas.

E limpar gaiola de passarinho? Primeiro tem que lavar no tanque aquele fundo de zinco, cheio de caca. Empedernido pelo vento impiedoso, o dejeto só sai com palha de aço ou espátula. Pior é quando você roeu todas as unhas na véspera, deixando as cutículas em carne viva. Aí sim, fica gostoso mesmo.

Gosto de tomar um uísque no fim de semana. Não mais que uma dose - cavalar, é verdade - o suficiente pra relaxar sem ficar xarope. E uísque sem gelo, não dá. É mais uma triste limitação do inverno, essa estação odiosa. Tendo que renunciar ao meu trago domingueiro, comecei a fuçar nuns álbuns de fotos, do começo dos 90. Umas férias onde estou de passageiro num barco, passeando pela baía de Camamu. Olho as fotos e, claro, acesso o registro correspondente na cabeça, ele existe, está lá. Porém é tão frio quanto o dia lá fora.

O fato sobrevive em linhas gerais, mas sem as sensações correspondentes. A foto não me traz de volta a brisa no rosto, o barulho do motor da embarcação, o azulado da água, o que sentia e pensava naquele instante.E assim acontece com outras coisas. Passo em frente de uma casa onde morei por cinco anos. E nada, só um flash nebuloso e em preto e branco vem à mente, condensando meia década num impreciso borrão de lembranças. Em seguida bate aquele paradoxo existencial - viver pra quê, se o que se vive agora será esquecido daqui a pouco? Você comenta com um amigo sobre isso e ele vem com a máxima, presente em 10 entre 10 manuais de auto-ajuda: "viva intensamente cada momento, como se fosse o último. Preste atenção ao presente, sem se agarrar ao passado ou se preocupar com o futuro. Assim você estará mais receptivo a reter o que acontece agora".

Pior ainda é constatar que a sua memória recente também é uma retardada, incapaz de lembrar do que você jantou ontem. Livros às centenas, filmes aos milhares. Não os reconheço, nem pela caixinha e nem pelo conteúdo. Para mim são eternos lançamentos. Olho para a estante, leio os títulos nas lombadas, sei que um dia os devorei a todos. Atenta e silenciosamente, a cada um deles dediquei dias e mais dias. Pra chegar agora e não lembrar de nada - nem da história, nem do assunto, nem dos nomes dos personagens, nem de coisa nenhuma. Dizem os psicólogos e neurologistas que é o consciente que não lembra, e que o subconsciente guarda tudo em detalhes. E é aí, inclusive, que eles entram com suas ferramentas e terapias. Penso: é a idade. Errado: aos 14 já era assim. Chego a aventar a hipótese de distúrbio cognitivo. Herança genética? Talvez. Meu avô estacionava o carro e esquecia os vidros abertos, a chave no contato e - inacreditável - o motor ligado.

Mas por que é que eu vim parar aqui mesmo? Sei lá. Esse frio deixa a gente meio assim, de miolo duro.


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