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Publicado: Segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

No tempo dos quintalões

O cheiro do feijão queimado inundava a Rua José Revel, em Salto/SP, já na década de 1920 e permanece até hoje, resultado das conversas das donas de casa - as comadres - que se reuniam na calçada para falar da vida alheia, enquanto as panelas torravam no fogo.

Do outro lado da rua, casinhas de tijolos à vista - idênticas - compunham a Vila Operária da Brasital S/A, a indústria têxtil que, com suas torres castelares, marcou a vida da cidade até 1981, quando foi adquirida pela Moinho Santista S/A – sem a inclusão da Vila, cujas casas foram vendidas a particulares.

No passado, 240 moradias formavam um grande quadrilátero que abarcava, além da José Revel, as ruas Barão do Rio Branco, Itapiru, 23 de Maio, Nove de Julho e Avenida D. Pedro II. O estilo arquitetônico -  fachadas em alvenaria de tijolos vermelhos, sem revestimento e de granito - repetia o dos demais prédios da Companhia, como creches, hidrelétrica, escolas, açougue, cooperativa e outros.

A Brasital, sucessora da Indústria Ítalo-Americana (1895), foi instalada na cidade em 1º de novembro de 1919 e provocou um êxodo do campo para a cidade. Era com orgulho que os até então lavradores assumiam seus postos na fábrica. Contam as antigas operárias que o trabalho na tecelagem produzia floquinhos de algodão que se agarravam aos cabelos, e que não eram retirados nem quando voltavam para a Vila. Iam elas pelas ruas gabando-se de portarem os "distintivos" de sua ocupação, que, também, lhes franqueava a moradia pela qual pagavam um preço simbólico, descontado na folha de pagamento.

O direito de morar era assegurado pela continuidade no emprego ou pelo ingresso de outro membro da mesma família. O tamanho das unidades variava. Havia as de três, quatro e sete cômodos - todas com os pisos de assoalho e forro de madeira. A oferta de vagas na fábrica era voltada, majoritariamente, para as mulheres, admitidas como aprendizes entre os 11 e 13 anos ou, no máximo, aos 14. Seus pais e a maioria dos maridos das mais velhas pouco eram aproveitados.

Fruto de uma política social voltada a seus funcionários e que rendeu à Brasital S/A o título de “Mãe de Salto”, a Vila Operária agregava inúmeras famílias de descendentes de italianos. Foi construída entre 1920 e 1925 pela indústria, que obteve da Prefeitura 25 anos de isenção de impostos em troca do investimento, que aliviava a escassez de moradias na cidade.

Parte integrante do conjunto habitacional, os quintais comunitários - os quintalões - foram idealizados como área de lazer para os filhos dos trabalhadores. Na prática, seu uso foi muito mais amplo. A instalação de oito tanques, chamados de vascas ou vascões e seis fornos de barro, de uso coletivo, levaram as mulheres e crianças a compartilharem o mesmo espaço, eventualmente frequentado pelos homens.

Ali os sons das brincadeiras infantis se misturavam às gargalhadas, às conversas à socapa e ao batesfrega das roupas. Eram os domingos os dias mais disputados. A mulherada procurava se revezar organizadamente, mas as brigas eram constantes, devido ao abuso de uma ou outra moradora. Os conflitos eram administrados por um fiscal, pago pela firma, que permanecia no local. Durante décadas as famílias que ali viviam promoviam suas festas, entre elas as juninas, embora coubesse à fábrica o controle sobre realização.

No século 21, pouco resta do patrimônio que abrigou tantas vidas: dos quatro quintalões existentes, três atendem a outras finalidades imobiliárias e um está tomado pelo mato. Podem ser vistos no Museu da Cidade de Salto, onde se encontra uma maquete do formato original da Vila Operária da Brasital.

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