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Publicado: Segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Martinho Boni - meu pai

Martinho Boni - meu pai

Orgulho de todo menino, eu também tive um pai. Chamava-se Martinho Boni.

Saudosos tempos! Lembro-me muito dele, suas brincadeiras, suas broncas e principalmente das histórias que contava. Sim com “h” porque para mim, na minha simplicidade de criança: “era tudo verdade”. Ele foi o meu Forrest Gump – O contador de histórias – filme que só apareceria em 1994, quase 20 anos após sua morte, com irretocável atuação de Tom Hanks.

Os tempos eram outros, corria o ano de 1970 e cinco anos mais tarde ele morreria com apenas 50 anos. Pronto, contei a parte mais doída, agora vamos à uma história.

Contou-me ele que num passado romântico da cidade de Itu, lá por 1930, todas as pessoas da cidade se conheciam (afinal não tinha tanta gente). Assim todos tinham interesse em saber dos casamentos, nascimentos e mortes. Pois é, mortes. Assim é que na Itu dessa época, não havendo funerárias, os corpos eram velados na própria casa enrolados em lençóis ou no necrotério do cemitério municipal sobre uma pedra fria de onde iam diretamente para a sepultura. Nada de caixões mortuários.

Mas para os defuntos de famílias afortunadas havia um tratamento bem diferente: os corpos eram velados nas casas onde viveram ou até nas igrejas e dentro de caixões feitos em madeira de pinus (acredito), fabricados sob medida, de acordo com o tamanho do morto.

Os habitantes eram poucos e os falecimentos também. Assim, por limitação de procura ou por idiossincrasia apenas uma pessoa interessou-se em fabricar os caixões na cidade. Era o Tição (nome que se dá a um pedaço de lenha parcialmente queimado) – apelido que algum engraçadinho colocou naquele negro alto e forte, único fabricante de caixões da cidade. Os apelidos eram comuns na época. Era a chegada do Bullying. O do meu pai, por exemplo, era Martelo. O porquê eu nunca soube. Mas voltemos ao Tição: com mais de dois metros de altura, marceneiro, ganhava a vida fabricando caixões para defuntos. O seu verdadeiro nome perdeu-se na história. Era um homem rude e forte, roupas simples e remendadas, cabelos e barba sempre desarrumada, desdentado, enfim era imagem do próprio Anjo da Morte, que muitos por superstição evitavam-no e até dele se escondiam. As crianças assustadas fugiam ao vê-lo, temendo serem capturadas por ele, em cumprimento a ameaça das mães de entregar ao Tição, os peraltas.

Ao saber de um falecimento, partia Tição em visita ao finado. Religiosamente dava as condolências aos familiares que estivessem por perto e, sempre com semblante triste, apressava-se em tirar as medidas do morto. Em seguida,  confeccionava o caixão, entregava-o horas antes do enterro, ajudando ainda a acomodar o defunto em seu interior. Era feito de tábuas cruas, sem pinturas e sem alegorias ou enfeites, em função da exiguidade de tempo.

E o recebimento pelo serviço? Tição só recebia depois da missa de sétimo dia, em respeito ao finado. 

Como não dispunha de carroça e nem animal, a entrega era feita por ele mesmo, segurando o caixão com os dois braços e apoiando-o sobre a cabeça. Nesse momento ele se transformava no informativo obituário da cidade, sendo abordado por todos com a pergunta: Quem morreu? Ao que ele pacientemente respondia com voz trêmula: Fulano de Tal.

Mais de uma centena de histórias foram contadas pelo meu pai e trago muitas delas vivas na memória. Eram de todos os temas: padres, militares, políticos, professores, mendigos. Algumas cômicas, outras tristes e até de terror.

Contarei outras, sempre em homenagem ao meu herói.

Até lá.

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