Colunistas

Publicado: Quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Liberdade Assistida

Crédito: APCRC Liberdade Assistida

Existe todo um discurso de liberação no qual as mulheres ganharam espaço de atuação, estão saindo de suas casas e buscando seus caminhos independentemente de homens ou sem certas obrigatoriedades vinculadas a questão do gênero ou aos papéis pré-determinados por nossa sociedade. Ok, entendo as diferenças históricas e de “modus operandi” do como a mulher deveria ou não proceder no passado, quais eram suas expectativas, e o que acontece hoje. De fato sou capaz de perceber e sentir mudanças significativas. Todavia, o que venho assistindo na minha experiência em atendimentos psicológicos na Delegacia de Defesa da Mulher, desde 2014, é que os índices de violência contra a mulher aumentaram ao longo dos anos e não diminuíram. Toda mudança carrega consigo pelo menos dois aspectos mais diretos e explícitos: os acontecimentos bons e construtivos e a desgraça.

 

O que parece estar acontecendo é uma espécie de liberdade assistida, onde somos e fazemos e operamos e trabalhamos, no entanto, com um certo limite de atuação muito bem delineado e estipulado através da força bruta, injustiças e abusos.

 

O que a liberdade tem a ver com a violência contra as mulheres? Com certeza temos muito mais liberdade de estar no mundo hoje do que há 100 anos atrás, contudo essa liberdade está nos custando o aumento do confronto direto entre os gêneros, resultando assim no crescente número de mortes e violências de todo tipo às mulheres.

 

Veja bem, com essa argumentação não estou tentando fazer uma apologia de que devemos voltar para dentro de nossos lares, abaixar nossas cabeças e nos esconder por detrás de séculos de história de opressão contra mulheres através dos tempos e pelo mundo. Não! Nunca! Não gosto de rótulos e não me cognomino uma feminista, sou apenas uma mulher pensante em tempos de acefalia. Prefiro o termo “humanista”, pois sou a favor da vida em sua plenitude e intensidade. Acredito que todos temos valores a agregar à realidade e às existências alheias. Sou uma defensora da vida e da capacidade de amarmos e nos entregarmos às experiências que nos ajudam a estar no mundo, com um significado maior do que o de simplesmente existir ou sobreviver.

 

Somos mais do que apenas carne, sangue e racionalidades. Não mais e nem menos do que nada ou ninguém, somos simplesmente e em nossa capacidade de ser o que nunca se foi e de alcançar o que nunca ninguém almejou. Temos consciência de nossa finitude e somos capazes de agir com intencionalidades que vão além de nos alimentarmos ou nos protegermos.  

 

Com certeza uma espécie complexa, mas ainda assim nada superior em escala evolutiva nenhuma e nem no topo da cadeia alimentar. Apenas humanos, apenas diferentes, apenas viventes. Somos o que fizemos de nós mesmos e vamos seguindo assim meio perdidos, meio experimentando, meio se entregando ou se protegendo da vida que brota de nossas ausências.

 

Certa vez assisti um vídeo de uma moça muito bonita falando sobre as violências e mazelas que os homens sofrem na nossa sociedade e solicitou que nós mulheres parássemos de “mimimi”. Ok. Os homens morrem de formas diversas de fato e talvez numa escala muito maior do que as mulheres, no entanto, não somos nós suas principais aniquiladoras. Não somos nós suas algozes. Ninguém verá e nem nunca viu uma sociedade no qual as mulheres dizimam homens a pancadas, por violação de seus corpos, psicologicamente ou qualquer tipo de abuso que leve a total ou parcial destruição da vida útil ou pulsante de um ser vivo. Agora, em contraposição, as Delegacias estão cheias de casos de mulheres sendo mortas, estupradas, espancadas, ameaçadas, abusadas, dizimadas por homens. Isso é fato, não é “mimimi” coisa nenhuma! É um triste fato, ainda muito real numa sociedade que se diz tão liberal, tão libertadora, tão conciliadora, tão globalizada.  

 

Matamos pessoas por suas escolhas sexuais. Destruímos pelas diferenças religiosas. Levamos ao chão tudo aquilo que nos causa estranhamento. Quando a morte brutal de uma vida humana for “mimimi” aí sim estaremos todos muito encrencados. Quando o sentido da existência for rebaixado a um simples jargão “que vença o melhor” ou “que se materialize a seleção natural”, aí de fato precisaremos repensar nossas existências paralelas em conexão com as existências alheias, pois isso seria o fim da convergência dos sonhos de uma sociedade onde todos pudessem ser seus máximos em suas plenitudes, com possibilidades e oportunidades compatíveis ou pelo menos proporcionais às suas necessidades.

 

Ergam suas cabeças mulheres! Vamos marchar por uma realidade na qual não precisemos nos rebaixar ou permitir abusos recorrentes para conviver. Chega! Quando uma mulher sofre uma violência, todas nós sofremos juntas. Quando uma mulher é morta, perdemos uma aliada na luta da sobrevivência enquanto seres humanos que pensam e sonham e têm todo o direito de uma existência sem ameaças. Não é mais possível nos enxergarmos como inimigas e fazermos o jogo malicioso de poder de uma sociedade fundamentada por um machismo brutal.

 

Não somos inimigas! Somos aliadas da vida! E vamos juntas colocar fim a essa liberdade assistida, que tolhe tanto quanto liberta, que inutiliza, que nos deixa a mercê novamente dessa testosterona acéfala ainda muito viva em nossa sociedade.

 

Somos um único corpo que sofre e se retorce, uma única alma que vaga solitária, um único coração que precisa se fortalecer e aprender a revidar. Só seremos vítimas se nos escondermos por detrás do machismo incrustado em nossa educação. Precisamos nos ajudar e nos proteger e não ficar reproduzindo o discurso dos algozes.

 

A vida é uma só, não recomeça, não depende de ninguém mais, além de nós mesmas. Somos capazes de mudar nosso destino e revidar. Que venham os punhos fechados, as armas carregadas, os abusos, as injustiças, a sobrecarga, as triplas jornadas de trabalho, as humilhações acerca de nossa capacidade. Que venham os pênis eretos forçando suas entradas em nossos corpos, as ameaças que nos tiram a paz ou até mesmo a sanidade, que venham todas as formas de violência ou abusos diversos, pois estaremos prontas, unidas e perigosas.

 

Eu me nego a ser dizimada e você?  

Comentários