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Publicado: Quarta-feira, 11 de setembro de 2013

História: Tributo à Ana Rodrigues

Crédito: Domínio Público História: Tributo à Ana Rodrigues

Quaisquer que fossem os sentimentos de Ana Rodrigues, antes de sua execução, certamente não estaria entre eles a perplexidade de saber que sua história atravessaria os séculos.

Protagonista do caso mais estarrecedor envolvendo mulheres acusadas de práticas judaizantes nos documentos do Santo Ofício, Ana chegou do Reino em 28 de dezembro de 1557 com alguns parentes e o marido, Heitor Antunes – um mercador de posses - na mesma armada do Governador-Geral Mem de Sá.

Judeu convertido à fé cristã, alcunhado de “cristão-novo”, Antunes gozava da confiança do Governador, do qual recebeu as terras de Matoim, na Bahia, onde construiu seu engenho.

O casal teve sete filhos, todos casados com “cristãos-velhos”, ampliando o grupo familiar e as suas posses.

Morto Antunes, Ana o enterrou segundo a tradição judaica, em terra virgem, esperando o momento de se juntar novamente a ele e guardando as jóias de seu casamento para ser enterrada com elas.

A visitação do Santo Ofício ao Nordeste açucareiro entre 1591e 1595 trouxe à tona os conflitos sociais e a disputa de interesses entre cristãos velhos e novos.

A família Antunes foi acusada de heresia, por práticas judaicas veladas e desrespeito à fé cristã. Segundo diziam, Heitor Antunes possuíra uma sinagoga em suas terras durante décadas. O templo sagrado teria sido construído por ele em seu engenho, numa "casinha separada", localizada ao lado da residência e freqüentada por importantes figuras da capitania.

Seu funcionamento continuou mesmo após a sua morte, com Ana, até a chegada do visitador da Inquisição, Furtado de Mendonça.

Foram muitas as denúncias que retratavam minuciosamente os costumes da matriarca e de sua família, como as práticas e interdições alimentares, as bênçãos, o luto ao modo judaico e o respeito aos jejuns e dias santos - cerimônias que pelo exemplo vivo da matriarca, eram transmitidas aos seus descendentes.

Parentes próximos á Ana, principalmente filhos e netos, confessaram ou foram acusados de algumas destas práticas, embora em nenhum caso tenha-se repetido o mesmo número de acusações que pesavam sobre ela.

Temendo as acusações e as suas consequências, alguns membros, entre eles a própria Ana, tentaram amenizar as denúncias com justificativas que explicassem os comportamentos tidos como heréticos ao inquisidor.

Em seu primeiro depoimento a Heitor Furtado, bem como em todos os outros, Ana procurou confundir o inquisidor na apuração das culpas. Mudou versões, negou afirmações anteriores, escondeu dados importantes e prestou informações falsas ou desconexas, como as que se relacionava à sua idade.

Afirmou primeiramente possuir 80 anos, depois 86 e, ainda, 110 anos - informação de extrema importância no processo - visto que sua idade poderia significar prova cabal de judaísmo.

O teatro armado por ela e por seus familiares, que insistiam em sua inocência, não convenceu o visitador.

Ana Rodrigues foi presa e enviada à Lisboa, em uma câmara comprada para ela, enjaulada e incomunicável, acompanhada de uma escrava negra para servi-la durante a viagem.

Velha e doente, Ana morreu no cárcere, o que não a livrou de ser processada pela Inquisição. Para cumprir com os preceitos determinados pelo Tribunal do Santo Ofício, sua imagem foi transformada em efígie e queimada. Sua memória foi amaldiçoada e os ossos desenterrados, queimados e transformados em pó, “em detestação a tão grande crime".

Para evitar que seu exemplo fosse repetido, um quadro que a retratava entre labaredas e seres demoníacos foi exposto na igreja de Matoim, onde morara, além do confisco de seus bens.

Durante a segunda visitação inquisitorial ao Brasil, em 1618, ainda se comentava sobre o comportamento dos Antunes. O quadro foi roubado a mando de um seu genro cristão-velho, para evitar qualquer ligação de sua imagem com uma condenada às chamas, e numa tentativa desesperada de resgatar-lhe a memória.

Como Ana, outras mulheres viveram divididas entre o catolicismo que repudiavam e o hebraísmo que lhes era vedado. Mártires da religião proibida, sofreram pressões, ofensas, calúnias e discriminações por lutarem pela continuidade da identidade de seu povo.

Não foram vencidas nem pelo Santo Ofício nem pela segregação social, contribuindo para manter vivos os ideais da religião que abraçavam. 

 

Conteúdo: Artigo: História

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