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Publicado: Domingo, 4 de maio de 2008

Gelo

Gelo

Preso no imã da porta da geladeira estava um bilhete de Maria Carolina, um pouco mais extenso e muito menos inocente que a média dos bilhetes domésticos.

 

“Sempre a mesma carne, todo dia, cansa. Precisa dar aquela variadinha básica no cardápio, e foi isso o que fiz, amor. Te traí porque sou humana, seria mais fria que esta geladeira se ficasse só ao teu lado e fizesse vista grossa à grande oferta de outros homens. Sendo a vida uma só, me parece muito pouco pretensioso conformar-me ao convívio de tuas manias mesquinhas, tua escova de dentes em péssimo estado, teu ar de cardíaco no pós-operatório e tua barriga de cerveja que cresce junto com a minha repulsa. Eu fiz o que tinha que ser feito em hotéis vagabundos, nas festas da firma – da firma em que você trabalha, diga-se de passagem, e até em mictório de metrô. Eu fiz com quem se habilitasse e tivesse aquele negócio em razoável estado de funcionamento. Eu fazia onde desse, e confesso que afoitamente e no improviso era melhor. Nos carros pequenos e grandes, muros, quitinetes emprestados e na roda gigante de um parque de diversões, com um sujeito barbudo que puxava uma perna, coitado. Teve um dia, amor, que foi na escada de incêndio, aqui mesmo em nosso prédio, com três vizinhos de uma vez e mais aquela morena de cabelo liso do 121. E quando disse que ia ao cabeleireiro, na terça passada, estava era tirando um filho de nem sei quem. Eu te sacaneei demais, se tem outra vida além dessa miséria em que a gente se arrasta, minha luxúria já cavou lugar cativo no fundo do inferno, à direita do coisa-ruim. E quanto mais eu fazia de dia, mais eu gostava de ir contigo à noite, pela cosquinha de saber que você nada sabia, pelo gosto de enganar mesmo. Dava uma pena danada ver você ali, arfando com uma pontinha de orgulho, achando que a minha fome era sinal de que eu me guardava pra ti. Se serve de consolo, fica sabendo que a dependência em fornicação variada é de família. Tua sogra nunca prestou, desde a menarca até hoje, e a mãe dela quase foi presa, tamanho o fogo e a devassidão. Quanto aos nossos filhos, nem precisa ficar na dúvida. Já de cara eu te garanto que não são teus, mas não exija de mim um prognóstico de possíveis pais. Seria leviana em arriscar um short-list, e dentre os inúmeros suspeitos está o teu irmão, Lúcio, pedaço de mau caminho que me levou às nuvens na piscina da casa de praia, no réveillon de 2002, enquanto você roncava entupido de vinho. Se depois de tudo isso ainda tiver fome, tem carne de panela no potinho atrás da gelatina. É só esquentar. Até um dia, amor.”

 

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