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Publicado: Sábado, 14 de novembro de 2015

Falhas de memória

Falhas de memória

Para instante de mera distração – e outro objetivo não há – seguem alguns relatos por vezes algo cômicos, mas extremamente comuns todos os dias.

Os personagens, numa e noutra história, estão nominados e, evidentemente, por nomes fictícios. Assim se procede porque, mesmo a custo de qualquer pretensão de situá-los, nada se consegue. Anonimato assegurado. E são por fim tanto casos acontecidos recentemente, bem como outros de datas passadas.

Destes dias, no entremeio de palestra de alta erudição, Joel e Lírio sentados lado a lado, eis que adentra o ambiente um terceiro. Lírio, de pronto, se levanta e o cumprimenta. Ao sentar-se, informa-lhe Joel, com cuidado e ao ouvido, que a cinta tinha pulado um passador da calça, na parte traseira. Somente em casa Lírio conseguiu sanar o descuido.

Aos idosos, outros repentes falhos, costumam acontecer.

Se asseguro não revelar aqui os amigos, eu mesmo não me pejo, de afirmar que procuro evitar gafes do gênero, os esquecimentos momentâneos, às vezes  tão embaraçosos. O mais encontradiço, esquecer o nome do eventual interlocutor.

Há toda uma série dessas distrações.

Sabe o leitor daquelas camisas sociais, para quando do aplique de gravatas, com minúsculos botões adequados ao colarinho? Então, quanta gente nem mais se dá conta de que os botõezinhos ali soltos e sem finalidade, deixam uma impressão ao menos esquisita.

Acontecem, e muito, as ocorrências mais sérias, no esquecimento de objetos particulares, uteis e indispensáveis ao dia a dia; isso quando não se trata da perda de carteiras, documentos ou o que mais seja. Mais raras, sabe-se contudo de algumas, como a situação embaraçosa de quando foge da memória a senha do cartão de crédito. E, se o indivíduo enrubesce, aí é que não tem mais jeito. Se não a senha e também ela caberiam no caso, útil é ter no bolso um papelzinho com números e códigos imprescindíveis, telefones também. Sabe-se por sinal de amigos que anotam e levam consigo lembretes, em suma, bilhetes para si mesmos.

Evidente que tudo se simplifica quando o cidadão, conquanto na idade provecta, sabe usar e abusar dos recursos que um celular oferece.

Bem, caberia perguntar se tudo isso seria particularidade implícita, com exclusividade, aos simpáticos velhinhos?

Que nada.

Houve uma situação em que os dois, Pedro e João, andariam mais ou menos lá pelos cinquenta e poucos anos, envolveram-se num situação deveras hilária. E autêntica.

Pedro adquirira um terno em São Paulo e só em casa notou defeito insanável no paletó. Vivia-se aquela semana efervescente do comércio em vésperas do Natal. Num sábado, ele era proprietário de um Fusca, convidara o João para fazer-lhe companhia, para troca da roupa.

João foi peremptório, ao negar-se, tanto por causa da ocasião de algumas providências inadiáveis, como porque no sábado à tarde era justamente dia de treino de futebol, no clube de campo.

Primeiro Pedro, sem qualquer palavra, olhou fixamente para o colega. Soube imprimir ao próprio semblante aquele ar triste de cachorro abandonado. Desconsolado.

Em menos de um minuto, o João, condoído cedeu:

- Vá lá que seja.

Claro que uma extensão de mais de cem quilômetros até São Paulo deu azo a colocarem a conversa em dia. Amigos, de verdadeiro apreço entre si, resolveram as falhas da administração local, o que seria conveniente para o Corinthians se salvar e na época mal das pernas, os preços repentinamente elevados na feira dominical do pátio do Mercado. Até alguns fuxicos sobre a vida alheira vieram à tona.

O fato é que, com um pouco mais de hora e meia, tinham chegado. João estaciona bem ao lado da loja. O trânsito, já bem alterado, não chegava, porém, aos pés da balbúrdia de hoje.

João silente. Coça a cabeça. Mudez total.

- Você não está bem?

João, num riso amarelo e sem graça confessa:

- Esqueci-me de pegar o terno.

Pedro não deixou barato. Esbravejou. Mostrou toda sua indignação.

O retorno rendeu mais. Nenhuma palavra.

Uma vez na frente da casa do Pedro, João indaga, temeroso e sem olhar nos olhos do amigo, bem ao modo de quando se espera pelo risco de uma sonora negativa, ainda assim com tênue esperança de êxito, se ele o acompanharia.

- Nem pensando. Chega.

Pedro desceu e entrou.

Ao chegar em sua casa, João é tomado de acanhamento, porque fatalmente lhe perguntariam se tudo correra bem. Entrou quietinho, passos lentos, sem ruído. Pura sorte, não havia ninguém. Suspirou fundo. Ufa!

Pegou o terno e encetou sozinho nova ida a São Paulo.

Durante o trajeto, programou algumas desculpas para justificar em casa a demora da volta. Culparia o trânsito, diria da loja cheia de clientes, esquecendo-se que mais cedo ou mais tarde,  todos ficariam sabendo.

Quando se encontravam, tempos depois da aventura, os dois amigos não se continham de tanto riso de si mesmos.

Sem qualquer pretensão de saudosismo inócuo, a irrefutável verdade é que, no passado não se sabia de tais descuido, inclusive porque a vida era ativa e, especialmente, participativa. Sem os atropelos, exigências e convenções sociais impositivas, às quais se adere nem se sabe por que nem para que.

Automaticamente.

Sobrava tempo para conversar.

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