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Publicado: Quinta-feira, 4 de março de 2010

Dom Quixote explica como entrei no Drs. da Alegria

Certa feita Sancho Pança advertiu Dom Quixote sobre a condição deveras depauperada de sua amada Dulcinea del Toboso. A pobre estava mais próxima de uma tribofe sebosa do que de uma princesa angelical de olhar cândido e sorriso irresistível. O velho fidalgo, contudo não se abate diante da aparente razoabilidade do olhar objetivo e imparcial de Sancho. Respira fundo e lança longe seu olhar como quem procura um saldo improvável de paciência, para finalmente redarguir com hálito de sábio: A beleza está nos olhos de quem vê, caro Sancho. O escudeiro abaixa a cabeça balançando-a de cá para lá em gesto de clara reprovação; àquela altura Dom Quixote já era um caso perdido ante os olhos lúcidos de Sancho Pança.

Com a virtual licença de Dom Quixote, atrevo-me a corrigi-lo e ir ainda mais longe: Não só a beleza, mas tudo o que existe está nos olhos de quem vê. Não fosse assim jamais poderia ter vivido a experiência que vivi quando fiz meu teste para ingressar no elenco de palhaços dos Doutores da Alegria.

A última etapa do teste era uma espécie de estágio de um dia como palhaço em um dos hospitais parceiros do projeto. Mal dormi à noite de tanta ansiedade. Criava um simulacro da cena que poderia viver na manhã seguinte enquanto rolava insone de uma beirada à outra da cama. Nessa cena hipotética entrava no quarto de um menino a quem decidi, aleatoriamente, chamar de Clayton. Finalmente adormeci.

Manhã seguinte cheguei ao hospital e quase desisti do teste, tamanha o mal estar que o ambiente hospitalar me sugeria. Cheiro de desinfetante, gente andando cabisbaixa, silêncio compulsório, tanta tristeza circulando que até me senti culpado por não estar padecendo de nenhuma enfermidade.

Enquanto me maquiava alimentava a convicção de que aquele não era um trabalho viável. Imagine vir duas vezes por semana a um lugar como esses? Literalmente insuportável sentenciei. 

Minha primeira saída como palhaço dentro do hospital logo desautorizou aquele meu juízo. Agora vestindo nariz vermelho, a menor máscara do teatro, e usando sapatos enormes e coloridos o lugar era outro. As expressões sisudas e as testas franzidas davam espaço a largos sorrisos e olhares amistosos. O prédio frio e asséptico ganhava graça, movimento e cores. A vida ali que se anunciava monótona, triste e inviável revelava-se agora dinâmica, surpreendente, redentora.

Passei no teste e trabalhei por cinco anos como um doutor da alegria. Inegável que aquele primeiro hospital do meu teste não se modificou, nem os personagens que o habitavam foram substituídos por outros mais simpáticos enquanto estive em meu camarim improvisado me preparando para o teste. Foi meu olhar, o ponto a partir do qual tecia meus juízos que deslocou-se e, junto com ele, tudo aquilo que era percebido.

Desde esse dia adotei o olhar de meu nariz vermelho como o meu instrumento criador de mundos. Já que - queiramos ou não, conscientes dessa escolha ou não - temos que adotar um olhar, porque não escolhermos então um capaz de ver o inusitado no já gasto e repetido, o diverso na mesmice, o estranho no familiar. O assombroso susto da novidade talvez seja capaz de inquietar o conformado, de despertar a princesa adormecida e de livrar-nos da rotina idiotizante.

A beleza está nos olhos de quem vê, caro Sancho. A beleza, a alegria, a feiúra e a tristeza caro Quixote, um mundo inteiro está nos olhos de quem vê, o mundo inteiro.

Ainda em tempo: o nome do primeiro paciente visitado naquela manhã de teste era Clayton.

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