Colunistas

Publicado: Domingo, 24 de fevereiro de 2008

Coração de Estudante

Coração de Estudante
Assistindo ao primeiro capítulo de “Queridos Amigos”, vi alguns dos amigos queridos e outros nem tanto pularem do pântano mofado feito pipoca de microondas. Uma espécie de “efeito cebola”, onde uma camada de recordação que se descasca vai revelando outra, mais profunda, que parecia perdida, mas que estava lá quieta, pronta para fazer chorar caso mexesse com ela.
 
Pode ser que a série se arraste daqui pra frente, e é natural que seja assim, pois se arrastaram sem arroubos de entusiasmo ou idolatria ao que quer que fosse aqueles anos perdidos. Não perdidos na memória, mas como valor utilitário mesmo. Foram anos que começavam e agonizavam sufocados por sua névoa paralisante, burocraticamente vividos, sem sentido prático nem perspectiva histórica. Um tempo sem ídolos, bandeiras e gritos de guerra, que mesmo quixotescos sempre fazem falta e dão à década alguma personalidade.
 
Bateu latejando o sentimento do tempo perdido, o vazio de termos nos esquecido num lado B qualquer de um disco do Lulu Santos. Girando, girando até agora no prato do 3 em 1 e deixando a todos tontos, sem achar rumo de vida. Éramos os que viam “Viva o MR-8” pichado nas paredes dos diretórios acadêmicos mas não sabíamos direito do que se tratava, geração que não disse a que veio nem muito menos foi informada para onde era levada. Liquidificávamos o Trem Azul da Elis, a tanga do Gabeira, o irmão do Henfil, o enterro da ditadura e a bisonha esperança na nova república, o João que preferia cheiro de cavalo ao do povo, o Sarney e seus fiscais.
 
Entrou o comercial, fechei os olhos e prossegui capinando o mato seco entre os miolos pra tirar dali um ou outro fruto que valesse uma recordação, que merecesse ser guardado no meio daquele torvelinho de fatos estéreis. Pois o que fazíamos, eu e todo mundo parido nas barbas de 64, era estarmos até tarde da noite em nossos quartos, legiões do Legião, paralamas de sucessos duradouros ou esquecíveis. Sucessos dos outros, nunca nossos. Víamos valores permanentes se descartalizarem, os telefones de baquelite se plastificarem, as casas de nossos avós virarem estacionamentos e os jardins das praças públicas serem tomados por monóxido de carbono.
 
Observando o reencontro de amigos da série da Globo, me pergunto de que no fim das contas adiantaria uma suposta reunião nossa, garotos de 21 em 1985. Vale a pena ver de novo? Não, não vale. Mais vale viver os 43 de agora, ainda que paire sobre nossas cabeças a ameaça de derretimento das calotas polares e a catastrófica aproximação da última profecia de Nostradamus. Não importa. Conta e muito a lucidez de hoje, embora provavelmente mais da metade da fita já tenha corrido e não haja possibilidade de rebobinamento.
 
Voltando aos muros pichados, havia aqueles que diziam “Tortura nunca mais”. E repisar esse passado é deixar-se vencer pelo torturante band-aid no calcanhar. Assim quis que saísse esse texto, escorreito e com a falta de burilamento que acabou ficando. Crônica de um jato só, vomitada na rebordosa de uma festa de estudante às vésperas da morte do Tancredo.
Comentários