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Publicado: Segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Bailarina

A trouxa na cabeça acompanha a mulher como sombra. O peso arca-lhe as costas que se dobram ainda mais na beira do rio. Com o sabão áspero de areia e banha, esfrega, bate, enxágua e torce - esfrega, bate, enxágua e torce - ritmo acompanhado pelas canções que só as lavadeiras conhecem - doídas, monótonas. A roupa lavada vai pro quaradouro, espécie de armação improvisada feita com ripas de madeira, taquara, arame ou o que mais houver.

A volta pra casa - a tapera de pau-a-pique - é acompanhada pelo cachorro sarnento e magro que, na alegria do reencontro, trança-lhe os pés, levando-a quase a cair. Passa, diz ela. Passa cachorro! Sem entender o desgosto da dona, o animal se anima, trançando e destrançando na sua frente. O ganido não tarda quando um pé com chinelo lhe dá um chute certeiro. O cão se afasta confuso, chacoalhando os ossos.

O caminho de terra levanta poeira ao andar. Seca, vermelha. Nada de plantas; só lá longe, no rio. A mulher carrega a trouxa cada vez mais pesada. Diacho, resmunga. Por que os filhos não crescem logo pra ajudar? Um punhado deles está na casa - a mais velha, de 10 anos, cuida dos menores enquanto ela está fora, novamente de bucho cheio.

O pai? Toca a enxada de sol a sol, nas terras dos Guaraci. Não há dinheiro. Só um pedaço de chão pra plantar, cedido pelo patrão enquanto o cabra trabalha pra ele. Dali é que sai o minguado sustento, além do leite que a cabra Zefinha ainda dá.

A miséria povoa cada frincha das paredes da casa, nos bichos que ali se abrigam, na velha estampa de Nossa Senhora, na sujeira das crianças e nas roupas que mal cobrem as vergonhas. Sapato quase não tem. Quando vem algum, é dos filhos da patroa e não chega pra todos.

A mulher pensa na comida pra alimentar as bocas, na mandioca que vira farinha, depois escaldada em água quente. Vida dura. O pão que alimenta o corpo exige renúncias e mortes, como quando foi vendida, ainda menina, por qualquer tostão. Seus sonhos ruíram. A filharada e os maus tratos lhe arrancaram o resto.

Enlouquece com a barulheira das crianças - choros, risos, brigas e gritos - uma muxirama de sons ininterruptos - sem falar nas doenças - na diarreia do pequeno e nas bichas da mais velha, tudo tratado com benzimento, pois remédio não há. A tarde morre e a mulher implora: dá-me forças, Senhor!

As crianças se apincham num canto quando o homem chega pra janta - a eterna sopa rala de batatas. Uma aragem fresca entra no casebre, furtiva, e a mulher suspira. O pio da coruja conta da trégua da faina e o sono chega de mansinho.

Lá fora a Lua redonda empurra a noite que encobre as dores. Ali baila a ninfa etérea - a bailarina - envolta em gases e véus. Livre no som do Universo, flutua, volteia, salta e voa no céu infinito. A Lua se move e esconde, envergonhada da nudez exposta ao dia. A bailarina grita e se dissolve em dor. A mulher acorda em pranto.

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