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Publicado: Sexta-feira, 2 de abril de 2010

A versão da cigarra

A versão da cigarra

 

Outro dia, estava fazendo meu chequim num hotel, quando a recepcionista perguntou minha ocupação. Falei a verdade: 

- Palhaço, sou palhaço.

Falei isso com entonação de quem diz: Bond, James Bond. A moça ameaçou escrever alguma coisa agitando a caneta por cima do papel, tomando cuidado para não encostar uma coisa na outra.

- Como assim? É artista? Posso por artista?

- Pode. Você pode até colocar cirurgião, mas na verdade eu sou palhaço.

- Mas eu não posso escrever isso assim. Até que o senhor é engraçado, mas não posso, tem que ser profissão. Ocupação é assim tipo profissão.

- Mas essa é minha profissão, sou palhaço. Aliás, só estou aqui por isso, vim fazer um espetáculo de palhaço.

- Ah, então por que o senhor não falou logo? É ator, profissão ator. Ator é profissão, né? 

Pensei: ai como esse povo é ignorante.

- Ator é profissão e palhaço também é. Tenho DRT de palhaço em minha carteira de trabalho. Pode por, eu garanto, põe aí: profissão: palhaço. Ou ocupação, sei lá.

- Ai, o senhor é muito engraçado. Tá bom, vou por palhaço. Mas o que o senhor faz para viver? Trabalha mesmo com o quê?

Respirei fundo como quem conta até dez. A essa altura eu já tinha desistido de explicar qualquer coisa para aquela moça. Tomei em minhas mãos um calendário que estava sobre a mesa, muito mais por nervosismo do que para conferir uma data qualquer. Enquanto manuseava o calendário, que pulava de uma mão para outra, continuei respondendo de modo impaciente ao questionário da jovem recepcionista.

Uma foto de uma cigarra no calendário chamou a minha atenção. Resolvi ler o que estava escrito e acabei chocado. Chocado com a tragédia que é a vida de uma cigarra. Lembrei-me daquela fábula da infância e fiquei inconformado com a tremenda difamação que a cigarra sofre por esses duzentos ou trezentos anos durante os quais essa história vem sendo contada. Já fui logo juntando uma coisa com outra: por conta dessa difamação, essa moça tem tanto pudor em aceitar que palhaço possa ser profissão.     

Quem não conhece a fábula da cigarra e da formiga? Uma: trabalhadeira, voluntariosa e responsável. Outra: fanfarrona, cantadeira, boa vida e imune aos clamores da prudência. Passa o verão na farra e se esquece de precaver-se contra as agruras do inverno. Batata! Quando chega o inverno, uma pode usufruir da reserva construída durante o verão. Enquanto a outra paga o preço da imprudência regada a noitadas de cantoria.

O precavido colhendo os frutos da responsabilidade, enquanto a outra paga pelo seu hedonismo desmedido. A ética do trabalho, da produção, da razão sobrepondo-se ao estereótipo do artista tresloucado, inapto e frágil. Mais dia menos dia, quem foge à regra acaba se dando mal. E não foi por falta de aviso, pois a formiga bem que alertou a cigarra.

Em resumo: artista é porra louca. Aqui já temos uma difamação. Quando li sobre a vida da cigarra naquele calendário fiquei ainda mais besta.

Nessa fábula, a injúria contra a pobre cigarra é ainda mais funesta do que o preconceito contra o  artista. No afã de detonar a imagem e a moral da cantadeira, foram escolher logo a pobre cigarra como símbolo de “boa vida”.

Naquele dia descobri que vida de cigarra presta-se muito mais a fabulações trágicas, do que a essa historinha reacionária  contada há quase trezentos anos.

A cigarra, um inseto frágil com pouco mais de três centímetros, chega a viver dezessete anos. Estava escrito lá no calendário da recepcionista. Só que não são dezessete anos de gandaia. Muito pelo contrário!

A cigarra vive sob forma larvar enterrada sob nossos pés por mais de dezesseis anos. Quase toda a sua vida. Só nos últimos quatro ou cinco meses de vida assume sua forma adulta, ganha corpo, asas, antenas e cores. Só no crepúsculo de sua existência, no último fio de vida, ela se cola no tronco das árvores para entoar seu canto de despedida. Muito mais um último suspiro, um “canto do cisne”, um adeus melancólico do que uma vida na gandaia.

Como se essa verdadeira novela mexicana já não bastasse, a coisa vai ainda mais longe: esse canto derradeiro é parte de um ritual de acasalamento. Um mecanismo para gerar outras cigarras, que irão viver enterradas por mais dezesseis anos, cantar, se reproduzir para viver mais dezesseis anos enterrada e por aí vai. Pra que tudo isso meu Deus?

Recoloquei o calendário sobre a mesa e sugeri à recepcionista que desse uma lida na estória da vida da cigarra.

- Ai, eu já li. Que coisa linda, não? Que mensagem de alegria, né?

Meu rosto virou um enorme ponto de interrogação e acho que ela percebeu, pois foi logo explicando seu ponto de vista:

- O senhor não viu que vida dura? Coitada. Passa quase a vida toda enterrada e quando finalmente sai da terra, ao invés de ficar reclamando ainda vai cantar. Que beleza, não?

Aquilo que eu tinha elaborado como tragédia, ela viu como um épico.

O ponto de vista do palhaço que eu quero ser, era o dela e não o meu.

- O senhor deseja ser acordado a que horas?

- Não me acordem. A propósito, fiquei curioso: qual ocupação você deu prá mim aí na sua ficha?

- Ai, desculpe, não escrevei palhaço não, achei melhor colocar desempregado. Assim não fica tão estranho. O senhor não se zangou, né?

- Zangado, eu? De modo algum. Boa noite.

Virei as costas e saí assoviando como faria uma cigarra.

  

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