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Publicado: Domingo, 1 de junho de 2008

A seus pés

Crédito: Google Imagens A seus pés
Ela está me olhando, como se tivesse vida a coisa de quatro pernas, um assento e um encosto. É móvel promovido com o passar do tempo à condição de ente querido, pois muito bem pode uma cadeira pôr-se acima das funções de acolher o cansaço e sustentar quem seja na troca de uma lâmpada. Ao menos essa cadeira pode, já que tem veias e vísceras e carrega em sua madeira o DNA da família e o endereço de casa.
 
Vem a música do Burt Bacharach, “A house is not a home”, dizendo que “a chair is still a chair”. Uma casa com uma cadeira dessas, que mesmo muda é capaz de me contar tantas histórias, é um lar afinal de contas. Acorre em viva cor o longínquo aniversário em que me empoleirei nela para alcançar a velinha do bolo. Muito depois, houve uma temporada em que quase toda tarde, esparramado na poltrona, nela apoiava os pés, fumando e tomando cerveja a olhar o quadro de Paris à noite - aquele para sempre na sala de estar, com o Arco do Triunfo em pinceladas grossas.
 
Há muita coisa além do automatismo dos cafés da manhã e das refeições na memória da minha cadeira, se é que a posso chamar de minha. Nela em algum momento fez-se intriga, confissões e certamente até sexo, a sós e a dois. Testemunhou ela insultos, afagos e cochilos, mães amamentando, fiéis em novena. Foi refúgio da criançada no esconde-esconde e serviu à platéia em saraus improvisados e discursos de sobremesa. Nessa cadeira à minha frente consolou-se gente em aflição, no luto e na angústia das esperas. Passou de palhinha a couro, de verniz a pátina, sem perder a identificação metálica embaixo do assento, com o selo da “Casa Allemã”. Conheceu dezenas de caminhões de mudança e tinha doze companheiras a princípio, quando a mobília era completa. Mas jamais foi objeto de cobiça. Manteve-se mera cadeira, com a discreta dignidade das cadeiras de família, tendo mais valor estimativo que monetário. Sentiu os suores frios e os arroubos dos finais de copas do mundo, no senta-levanta nervoso da torcida. Acudiu como amparo na hora da notícia triste, foi inventariada e trocou de mãos no correr das gerações.
 
Braços firmes e pernas nem tanto, ela parece fazer comigo esse retrospecto e permanece me encarando sem expressão, com a mesma frieza da vidraça às suas costas. É provável que sinta-se ainda hoje parte da imbuia que a gestou, ao passo que sinto nela uma finalidade e um sentido que não se esgotam no instrumento cadeira e sua mecânica utilidade.
 
Quando morrer, alguém se sentará nela para chorar o que fui e o que não deu tempo de ser. Um neto, quem sabe um bisneto, se tiver a sorte de viver bastante. Seja lá quem, será alguém que possivelmente pouco compreenderá do insondável da vida e do além dela, que estará ali circunspecto e calado ante o pesar da perda. Revoltado com a tirania do findar-se ou esperançoso com a perspectiva de um paraíso onde deverei flanar tendo assuntos mais nobres em mente, despreocupado com móveis e utensílios que a terra há de comer. Liberto da cansada carne para ser de novo menino, trepado em outras cadeiras de outros mundos. Então verei minha peça da “Casa Allemã” desfazer-se e passar a decorar as salas das lembranças dos que ficam.
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