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Publicado: Terça-feira, 5 de abril de 2011

A arte do desencontro V

A arte do desencontro V

Gilmar atirou seu corpo cansado na cama e ali ficou olhando para o teto. Marisa interrompeu o silêncio da cena:

- Quando será que você vai aprender a baixar a tampa da privada?

Gilmar fechou os olhos, é que pensou em fingir que já estivesse dormindo mas Marisa não deu tréguas:

- Nesse mundo machista os homens não respeitam as mulheres.

Sua voz saiu abafada, pois a porta do banheiro estava fechada. Saiu abafada mas forte o suficiente para Gilmar arregalar os olhos e indagar:

- Mas o que tem a ver eu baixar ou não a tampa da privada com machismo?

- É que vocês homens não se preocupam com as mulheres. Agem como se não existíssemos.

Gilmar poderia até concordar com a reclamação de Marisa, mas seu censo lógico não permitiu:

- Qual a relação entre a tampa da privada e o machismo?

Marisa saiu do banheiro para apanhar uma calcinha em seu armário, aproveitou sua passagem diante da cama onde Gilmar repousava e, parada diante dele, mesmo sem calcinha e com uma toalha enrolada na cabeça, fez uma explanação que esperava fosse definitiva:

- Meu amor, não sou eu quem está dizendo, isso é ponto pacífico, basta você ler alguns artigos de feng-shui. Não se deixa a tampa da privada aberta. A privada vai direto ao esgoto. Deixar a tampa aberta é deixar um canal aberto com o esgoto. Estamos falando de higiene energética, mas você não deve entender isso.

Gilmar tentou entender melhor e, apoiando as mãos no colchão, ergueu o corpo e sentou-se. Estava confuso:

- Você está falando de qual tampa? A vazada ou a de cima?

Por mais que parecesse sem sentido, sua pergunta fazia parte de um raciocínio lógico elaborado. Se Marisa se referisse à tampa vazada é por que deveria estar se referindo às gotinhas de urina que teimam em pingar ali. Essa primeira hipótese era a mais delicada, acreditava Gilmar. Se fosse, a segunda hipótese, ou seja, sobre a tampa de cima, aí então ele estaria salvo, pois estava certo de que isso nada tinha a ver com machismo.

- Estou falando das duas tampas.

Gilmar ficou desnorteado; não tinha se preparado para essa hipótese. Mas Marisa prosseguiu e foi a salvação d eGilmar:

- Estou falando sobre fechar o tampo da privada.

- Ah, então você está se referindo à tampa de cima.

Marisa começava a se impacientar com o que acreditava ser uma provocação. Não era.

- Não dá para fechar a tampa de cima sem fechar a tampa de baixo.

Gilmar percebeu que Marisa elevara o tom e explicou-se, ou tentou:

- Tudo bem, só estou querendo saber se o problema é a questão do feng-shui, a história de fechar a porta para o esgoto.

O tiro saiu pela culatra. Marisa sentiu que Gilmar estivesse debochando dela.

- Olha Gilmar, sei que você não acredita nisso, mas é um estudo, é praticamente uma ciência. Feng-shui é coisa séria.

Marisa voltou ao banheiro, não tinha acabado de se arrumar para dormir.

- Tudo bem, o problema não é a seriedade ou não do feng-shui, a questão é qual a relação dele com o machismo?

A partir de sua ótica cartesiana, toda a questão se resumia à vinculação ou não da questão da tampa da privada aberta com o machismo. A questão em si deixava de ter importância para ele, Gilmar só queria provar a inconsistência lógica da reclamação de Marisa.

- Se o problema em deixar o tampo da privada aberto está relacionado a se deixar aberta uma comunicação entre a nossa casa e o esgoto, então isso afeta tanto a mim quanto a você. Não tem nada  a ver com machismo. Atinge o ser humano independente do gênero.

Marisa falava enquanto escovava os dentes, o que dificultava a compreensão de Gilmar:

- Mas quem deixa a tampa da privada aberta é sempre você, eu vivo baixando tampo de privada, seja em nosso banheiro, no lavabo ou no escritório.

- Tudo bem, mas isso não tem nada a ver com machismo.

Era claro que Gilmar se ofendia muito mais em ser chamado de machista do que de porco.  Marisa não arredava pé, pois era fato que vivia baixando tampo de privada pela casa.

- Mas é sempre você quem deixa a privada aberta. Será que todo homem é assim?

- Você insiste em levar a questão como um sendo ato machista, e não é. Pois, segundo você, a pessoa que deixa a tampa da privada aberta, seja homem ou mulher, está causando mal não só ao companheiro ou companheira, mas a si próprio. Não tem nada a ver com machismo ou feminismo.

Marisa já tinha deixado de seguir o raciocínio de Gilmar, aquilo parecia tramóia premeditada para desviar a questão. Não era, era o resultado do raciocínio reto, lógico e dedutivo de Gilmar

- Eu não entendo por que você não baixa a tampa da privada. Isso é machismo. Deixa que a mulherzinha vá lá e faça.

Agora era Gilmar quem subia o tom:

- Isso não tem nada a ver. Se não baixo o tampo da privada isso não traz prejuízo só a você. Deixo nossa casa ligada ao esgoto e isso afeta todos que moramos aqui, não só você.

- Mas sou eu quem reclamo, você não está nem aí por que sabe que a mulherzinha vem e fecha.

- Não, eu não estou nem aí por que isso não é uma questão para mim.

Gilmar disse isso, levantou-se e foi ao banheiro enquanto Marisa se cobria, já deitada.

- Essa não é uma questão para você por que você é um machista e não pensa na sua mulher.

- Eu nem penso nisso.

- Viu? Então você admite.

Lá do banheiro, Gilmar respondeu gritando mais do que o necessário para ser escutado, o que denotava certa dose de impaciência.

- Eu não admito nada, você mistura tudo, não dá para conversar com você. Você não mantém um foco. Fala de uma coisa depois já está falando outra. Isso não tem nada a ver com machismo. Gilmar disse isso e voltou ao quarto. Àquela altura da conversa e da noite, Marisa já tinha desistido da discussão, se dava por satisfeita se tivesse convencido o marido a baixar a tampa da privada toda vez que a usasse.

Marisa deitada, afofou o travesseiro e deitou de costas para o marido.

- Você não quer conversar e o machista sou eu? É o inverso do estereótipo. É a mulher quem não gosta de discutir relação, não o homem. E o machista sou eu.

Marisa foi decisiva em seu próximo argumento:

- Gilmar, você baixou a tampa da privada?

Gilmar levou a mão a cabeça:

- Putz, não lembro.

- Eu lembro Gi

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